domingo, 25 de abril de 2010

Educação pública e mobilidade social em perspectiva histórica


Por Valerio Arcary

“A doutrina materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, e de que portanto, seres homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens, e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade.” Karl Marx[1]

Nas últimas três décadas governaram no Brasil, em algum momento, os partidos de direita, de centro-direita, de centro-esquerda, e da esquerda moderada. Um espectro amplo, que vai de distintas interpretações do neoliberalismo às mais diferentes versões da regulação estatal do capitalismo, teve a oportunidade de apresentar suas soluções para a educação.
As taxas de evasão escolar altas, os índices de repetência elevados, os maus resultados nos exames como o ENEM ou o PISA, entre tantos outros indicadores que expressam a péssima qualidade da educação pública e a mediocridade da educação particular, foram admitidos, embora com relutância, pelas autoridades. Mas, esta constatação não impediu que um governo municipal, estadual ou federal após o outro, ao longo dos vinte e cinco anos desde a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral em 1985, tenha se preocupado em destacar os pequenos avanços na universalização do acesso ao ensino básico para sublinhar que, gradualmente, estaríamos avançando na elevação da escolaridade média. Os governos tiveram uma especial fascinação em fazer campanhas de publicidade sobre a construção de escolas e, mais recentemente, faculdades.
Edifícios monumentais, instalações imponentes fazem a delícia dos publicitários na hora de campanhas eleitorais. Esqueceram, porém, de explicar ao povo que se pode construir um prédio com equipamento completo e moderno para 1000 alunos, ao custo de dois ou três anos de sua manutenção. A solução da crise da educação não vai ser encontrada na engenharia. É verdade que o Brasil partiu de patamares de escolaridade média, em comparação com os países do Cone Sul, dramaticamente, baixos, porque se manteve como uma sociedade agrária até os anos cinqüenta.
Não atingimos, contudo, ainda hoje, mais do que os sete anos, para a população com mais de quinze anos de idade. Avançamos dois anos, em trinta anos. Em comparação, a escolaridade média nas sociedades do Mediterrâneo – países que foram centros de Impérios, todavia, com regiões de industrialização muito tardia – alcança e, em alguns casos, até supera os doze anos. O atraso educacional brasileiro fica mais claro se considerarmos que, mesmo em São Paulo, a população em idade escolar matriculada em cursos pós-secundários é inferior a 20% - a média brasileira é de 15%- enquanto na Argentina está nos 30%, e nos EUA ou na França supera os 70%.
[2]Estagnação econômica e desigualdade social na longa duração
Esta terrível lentidão merece uma contextualização histórica. Parece incontornável concluir que tanto os indicadores quantitativos, quanto os qualitativos sobre a situação da educação são desoladores. A relação deste nível abominável de escolaridade com a rigidez social de uma sociedade que se mantém entre as mais desiguais do mundo tem sido, contudo, menos valorizada. Rigidez social significa que a mobilidade social ficou congelada e que, portanto, não aconteceu redução na desigualdade. Já sabemos que, historicamente, o que não avança, recua. Enquanto outros indicadores sociais, como a expectativa média de vida, não deixaram de crescer ao longo do mesmo intervalo histórico, a escolaridade média evoluiu em ritmo liliputeano. A estagnação do capitalismo brasileiro se manifestou na renda per capita, que permaneceu invariável em trinta anos, ou na evolução do salário médio, que teve viés de baixa.
Os mesmos fatores históricos que explicam porque o Brasil deixou de ser um capitalismo de pleno emprego e de crescimento acelerado, depois dos anos oitenta, e passou a ser uma economia de baixo crescimento e desemprego estrutural de 7% a 10% da população economicamente ativa, explicam, também, porque a elevação da escolaridade não garante sequer trabalho. O desemprego na população mais escolarizada é maior que naquela com pouca instrução.
Na longa duração, a estagnação econômica bloqueou a mobilidade social e o Brasil entrou em crise crônica até 2004. Se irá ou não sair dessa crise é algo, por enquanto, incerto, apesar do crescimento entre 2004 e meados de 2008, durante a última fase ascendente do ciclo mundial, interrompida pela recessão da crise mundial.
O que parece significativo é que a evolução da escolaridade média não oferece maiores oportunidades como antes. Por isso, a parcela da juventude que busca o EUA, a Europa e o Japão, ao contrário de países latino-americanos vizinhos, não tem instrução abaixo da média, mas acima. O argumento deste texto é que o aumento da escolaridade deixou de ser um fator de impulso à mobilidade social como antes dos oitenta.
Fobia de professores
Apesar desta defasagem histórica, as verbas para a educação não aumentaram, significativamente, mesmo depois da eleição de Lula.[3] Nossos governantes descobriram com maior ou menor ênfase, que não seriam necessárias mais verbas, embora os gastos públicos com educação no Brasil - 4,1%, em proporção do PIB - sejam 50% menores que na França e nos EUA (5,9%), e inferiores até aos de países mais pobres, como, surpreendentemente, o Paraguai (4,3% em 2005), um país em que 40% da população vive em área rural, e com renda per capita menor que US$2.000,00 por ano, enqunto a do Brasil é de US$6.852,00.[4]
No lugar de gastar mais, propuseram gastar melhor. Ninguém poderia discordar que a idéia de gastar melhor parece ótima. Descobriram que os estudantes deveriam ficar mais tempo na escola. Ninguém pode contrariar a idéia de que seria melhor crianças e jovens nas escolas do que nas ruas, ou em casa vendo televisão. Descobriram, também, que a responsabilidade por uma boa gestão das escolas deveria ser compartilhada para os pais. As famílias foram conclamadas a vigiar as escolas de seus filhos. Ninguém tampouco poderia discordar com a idéia de que precisamos de pais empenhados na aprendizagem dos seus filhos.
Isto posto, as autoridades em política-educacional têm tido uma especial preferência pela idéia de que a crise da educação é culpa dos professores. Reconhecem que a carreira ficou pouco atraente e aceitam que os salários são baixos, e as condições de ensino são difíceis. Priorizaram, todavia, uma apreciação que insiste na idéia de que os professores não ensinam como deveriam. Ninguém ignora, muito menos os professores, que o ensino oferecido nas escolas públicas não corresponde às necessidades da juventude brasileira. Mas, atribuir aos professores a responsabilidade pela situação da educação não explica a nossa crise, e não é justo.
Resumindo, e como em todo resumo sendo brutal, os governantes das últimas décadas atribuem a culpa pela crise da educação ora aos estudantes, que não querem estudar, porque estariam pouco motivados, ora aos pais, que estariam pouco engajados, ora aos professores, que estariam pouco preparados.
Todos seriam em alguma medida culpados. E, os mais honestos, admitem até que os governos seriam, também, culpados. Quando todos são culpados, não há inocentes. Esse “empurra-empurra” não é útil. Apesar destes escapismos, nossos governos repetiram, quase como um mantra, soluções que dependem, essencialmente, da disciplinarização dos professores. A crise da escola se explicaria porque os professores faltam às aulas. Ou, quando comparecem, não sabem ensinar e são pouco qualificados.[5]
Ou então, mudam muito de escolas, e não se comprometem. Em conseqüência, alguns governos privilegiaram as penalidades seletivas, e outros as gratificações seletivas, ou combinações variadas de punição e recompensa: demissão, cursos, exames, bônus por resultados.
Um pouco de tudo vem sendo tentado para criar estímulos materiais e morais recorrendo ao medo, à competição, à repressão, e até ao prêmio da ganância. Em uma palavra, fomos governados por gênios, mas, infelizmente, temos professores despreparados e desmotivados. A força da propaganda foi tão grande, que até uma parte dos próprios professores assimilaram o discurso, e aceitaram a premissa de que seriam incapazes e preguiçosos, desmoralizando-se.
Mas, como estamos aprendendo com a gripe suína, não é um bom critério confundir bananas com maçãs: sem um diagnóstico correto não há terapia bem sucedida. Uma epidemia virótica não pode ser derrotada com antibióticos: exige remédios antiviróticos, não antibacterianos. Não adianta o médico ser simpático, compreensivo e cheio de compaixão. Se errar na receita, o paciente não vai melhorar. E o que não melhora, já sabemos, piora.
Na vida política e social não é diferente. Um diagnóstico errado da situação da educação conduzirá, inevitavelmente - não importam, infelizmente, as boas intenções - a desastres. Apresentarei adiante quatro temas incômodos. Estes quatro temas revelam uma escolha teórico-política muito diferente daquela dominante nos Ministérios e Secretarias de Educação dos governos no poder. Serão usados os instrumentos da análise histórica para analisar alguns aspectos da situação da educação pública.
A primeira idéia é o impasse da educação pública no Brasil como instrumento da mobilidade social ascendente, a partir dos anos 80.
A segunda é o atraso educacional-cultural relativo do Brasil em relação a muitos países que têm uma inserção histórico- econômica comparável, como o Uruguay, o Chile, e a Argentina, e que nos remete à privatização da educação para os filhos da classe média e das classes proprietárias.
A terceira é a degradação profissional dos professores, a desvalorização da carreira docente como principal fator da crise da escola pública. A última é uma avaliação do papel do movimento sindical dos professores como última linha de defesa da educação pública nestes últimos trinta anos.Escolarização e mobilidade socialA educação pode ser um poderoso instrumento de mobilidade social. Mas, este campo de investigação econômico-social é ainda recente, e é importante não exagerar o seu significado.
A educação, por si só, não pode mudar a sociedade. Sociedades muito desiguais, como o próprio Brasil entre os anos 30 e os anos 80 do século XX, podem ter uma taxa de mobilidade social maior, por um período, que sociedades menos desiguais, como a Argentina na mesma etapa histórica, embora nossos vizinhos tivessem níveis educacionais superiores. Ou seja, a educação ajuda a mobilidade social, e esta favorece a redução da desigualdade, mas não são o mesmo fenômeno.Mobilidade social é um indicador que resulta do estudo de um conjunto de variáveis que permitem avaliar quais são as possibilidades da geração jovem elevar as condições da sua existência material e cultural, em comparação com a geração mais velha. Na medida em que a escolaridade média aumenta, parece existir uma tendência à elevação dos salários mais baixos, e uma redução das diferenças entre o salário médio dos assalariados de colarinho azul (vinculados ao trabalho manual), os assalariados de colarinho branco (vinculados às atividades de rotina na área de serviços) e os assalariados de elevada escolaridade (professores, médicos, engenheiros, médicos, gerentes, etc).
No entanto, a ilusão de que uma sociedade mais instruída seria, necessariamente, uma sociedade mais justa não tem fundamento histórico. Não existe um padrão na história contemporânea que associe aumento da escolaridade e redução da desigualdade. A elevação da escolaridade é condição necessária do aumento da mobilidade social, porém, não suficiente. A taxa mais acelerada de mobilidade social é condição necessária da redução da desigualdade, mas tampouco é suficiente. Existem até estudos que sugerem, inclusive, uma relação entre aumento da escolaridade média e crescimento econômico. No Brasil, todavia, aconteceu um impasse na relação entre escolaridade e mobilidade social a partir da década de oitenta do século passado. Impasse significa dificuldade, aparentemente, insolúvel.
Somente quando a maior homogeneidade salarial veio acompanhada de uma redução da participação do capital na renda nacional e, em conseqüência, do aumento da renda apropriada pelo trabalho, o que foi, historicamente, excepcional (um exemplo progressivo foi a Inglaterra depois da última guerra mundial, e um regressivo, os EUA, no mesmo período) acontece uma redução da desigualdade social. Ou seja, não basta que diminua a diferença entre o salário médio do pedreiro e o do doutor, porque eles podem estar ficando todos, relativamente à renda do capital, mais pobres, ainda que vivendo melhor do que os seus respectivos pais.
Não adianta aumentar o pudim, se as porções não forem mais bem divididas. Se os capitalistas não perderem, os trabalhadores não podem ganhar. É preciso que a renda do capital tenha sido, proporcionalmente ao aumento da riqueza nacional, menor do que no período histórico anterior, para que seja possível a redução da desigualdade social. Não é difícil concluir, portanto, que este processo é governado por muitas variáveis políticas complexas.
A elevação da escolaridade média parece ter sido um dos fatores que favoreceu a diminuição da desigualdade social em alguns países da Europa Ocidental, como na Holanda e Escandinávia, nas três décadas do pós-guerra.
Nada semelhante tinha acontecido antes: as férias de trinta dias remuneradas foram consagradas na França, por exemplo, somente em 1936, depois de uma greve geral. Uma combinação extraordinária de fatores econômico-sociais (crescimento, pleno emprego, fortalecimento do movimento sindical, transferência de renda por via fiscal) e políticos (o medo de novas revoluções sociais) permitiu reformas do capitalismo que ajudaram a consolidar os regimes democrático-eleitorais. Políticas públicas que reconheciam direitos universais garantiram a universalização crescente do acesso à educação, saúde e previdência.
Nos últimos vinte e cinco anos, contudo, a tendência histórica se inverteu, e estas conquistas sociais conheceram importante erosão, mesmo nos países centrais, e a desigualdade social voltou a crescer.Os critérios de aferição da mobilidade social podem ser diferentes. Estas variáveis podem ser a evolução do salário médio; a redução das taxas de desemprego; o aumento do consumo de bens perecíveis (alimentos, roupas) e bens duráveis (eletrodomésticos; motos, carros); do consumo de produtos culturais (livros, cinema, música); do acesso à casa própria; a oportunidade de viagens, entre outros. Entre eles, a evolução da escolaridade média parece ser uma das variáveis mais significativas.
O importante, entretanto, é destacar que em algumas sociedades, e em alguns períodos históricos, a mobilidade social é maior ou mais intensa. Em outras sociedades e em outros períodos pode ser menor e mais lenta. Há, também, a tragédia das regressões históricas, quando uma sociedade entra em decadência, e em vez das condições de vida do povo melhorarem, pioram. Países socialmente muito rígidos, em que a distribuição de renda é regressiva e as transformações político-sociais estão congeladas tendem a viver crises políticas crônicas que podem evoluir para situações revolucionárias.As sociedades com maior mobilidade social tiveram, historicamente, maior coesão social, portanto, maior estabilidade política das suas instituições. Os países que compõem a Tríade (EUA, União Européia e Japão) que dirige o sistema internacional de Estados, embora muito desiguais entre si, viveram nas décadas do pós-guerra essa situação.
Por outro lado, em sociedades agrárias em processo tardio de industrialização (China, Índia, Paquistão, Egito, Irã, Nigéria) a percepção da injustiça social é mais lenta do que aquelas em que a maioria da população já foi reduzida à condição do trabalho assalariado e vive em grandes cidades. Não obstante, nos países com intensa desigualdade social depois de completada a primeira etapa da urbanização, a coesão social foi menor e, portanto, menor, também, a estabilidade política, podendo evoluir para situações revolucionárias, como aconteceu na Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador entre 2001 e 2005.A promessa meritocrática da equidadeUma das premissas do liberalismo foi a igualdade jurídica dos cidadãos. A lei seria igual para todos. Direitos e deveres iguais, ainda que em uma sociedade de desiguais, seria a utopia possível.
A promessa dos governos que se sucederam no poder, no Brasil, depois do fim do regime militar foi, contudo, mais audaciosa: afirmaram durante as últimas décadas de regime democrático-liberal que a educação seria uma via de afirmação de maior justiça social: “estudem e trabalhem duro, e terão um futuro superior ao dos vossos pais”.Os defensores de um capitalismo mais ou menos regulado, fossem liberais ou reformistas, com inspiração na experiência norte-americana ou européia, presumiam que a escola poderia mudar o Brasil diminuindo as desigualdades sociais. Defendiam que através da meritocracia, portanto, da igualdade de oportunidades, a equidade, existiria a possibilidade de melhorar de vida. Toda a promessa da meritocracia consistia na premissa de uma justiça universal. Expliquemo-nos: sendo as oportunidades de educação e trabalho muito menores que as necessidades, seria justo regular a seleção dos mais capazes, mais tenazes, mais inteligentes, através de obstáculos ou de barreiras que deveriam ser universais. A equidade era o único horizonte possível, porque presumiam que a igualdade social seria uma utopia. Educação e trabalho para todos garantiriam, esperava-se, uma maior coesão social à democracia no Brasil, na periferia do capitalismo. A democracia liberal afiançaria, gradualmente, prosperidade. Seria uma questão de paciência. Os mais esforçados teriam uma melhor educação, conseguiriam melhores empregos e a mobilidade social premiaria o talento e a perseverança.Não obstante o discurso meritocrático, a educação esteve longe de ser a política social mais importante do último período histórico. Em São Paulo, o mais rico Estado, construíram-se muito mais prisões do que Universidades. Liberais e reformistas, quando no governo (porque em campanhas eleitorais se permitiram todas as liberdades da demagogia), insistiram que a diminuição da desigualdade não passava por retirar dos mais ricos para os mais pobres, mas elevando o padrão de vida dos trabalhadores, sem prejudicar os capitalistas, que não poderiam ser contrariados para favorecer a disposição de investimento.No entanto, todos os levantamentos estatísticos disponíveis a partir do censo do IBGE de 2000 e dos PNAD’s dos anos seguintes informam que, apesar de melhoras quantitativas modestas dos índices educacionais, a situação da educação pública é pouco animadora, e a situação social permanece crítica. Se considerarmos somente duas variáveis fundamentais, descobrimos que o desempenho médio dos alunos das escolas públicas em exames como o ENAD é abaixo de satisfatório, e o salário médio dos trabalhadores da seis principais regiões metropolitanas atingiu, em março de 2008, seis anos depois, o nível que tinha em setembro de 2002.A expansão da rede pública foi significativa nos anos sessenta, setenta e oitenta, mas não diminuiu a desigualdade social. Ao contrário, a desigualdade aumentou entre os anos sessenta e os anos noventa, mesmo quando o PIB brasileiro duplicava no intervalo de uma década, como entre os anos trinta e setenta. O aumento da escolaridade média aconteceu muito tarde em relação à velocidade da industrialização, e foi muito lento. O custo da universalização da educação revelou-se muito alto. O capitalismo brasileiro foi incapaz de garantir um financiamento do Estado suficiente para o custeio da escola obrigatória de qualidade universal.Depois, a partir dos anos noventa, vieram as políticas sociais focadas – primeiro em um governo do PSDB em Campinas, depois no de Cristóvão Buarque eleito pelo PT em Brasília e, finalmente com o de FHC - que o governo Lula está preservando e aumentando em escala. No intervalo que vai de 1980 a 2008, o PIB brasileiro duplicou, se consideramos a paridade do poder de compra com um vetor de ajuste, mas a população também quase dobrou, ou seja, a renda per capita permaneceu estagnada. Considerando estes números frios na longa duração, o Brasil nem avançou, nem recuou: transformou-se em uma sociedade de capitalismo de baixo crescimento.A mobilidade social, ou seja, a esperança de ascensão social de uma geração para outra permanece muito pequena.
Os estudos destes últimos anos que descobrem um Brasil de maioria de “classe média”, porque um pouco mais de 50% da população teria renda mensal familiar igual ou superior a R$1.200,00, ou seja, adquiriram a capacidade de se endividar para comprar alguns bens duráveis com a expansão do crédito consignado, são insuficientes para justificar otimismo. A desigualdade social brasileira continua entre as mais elevadas do mundo, e a participação do trabalho sobre o conjunto da riqueza nacional diminuiu de mais 50% antes de 1964, para menos de 40% nos dias de hoje. Mais de vinte anos de democracia e de alternância no poder municipal, estadual e nacional entre a centro direita e a centro-esquerda, que tiveram oportunidade de aplicar as mais variadas políticas econômicas e os mais diferentes projetos educacionais, não trouxeram maior mobilidade social.Segundo os dados do IBGE, os 10% mais ricos da população ainda são donos de 46% do total da renda nacional.
Já os 50% mais pobres ficam com apenas 13,3%. Há décadas o Brasil anda de lado, ou seja, fica para trás. Sem um diagnóstico que identifique as raízes deste processo não poderemos pensar políticas públicas adequadas às nossas necessidades.No Brasil, a experiência das classes populares com o regime democrático tem se desenvolvido, comparativamente, em forma mais suave e ritmos mais lentos que em alguns dos países vizinhos que viveram situações revolucionárias depois dos ajustes neoliberais – como Venezuela, Bolívia, Argentina e Equador - mesmo se considerarmos que, mais de vinte anos de democracia, não foram suficientes, não importando qual fosse o governo, para mudar no fundamental o destino da classe trabalhadora.
Fatores objetivos e subjetivos condicionaram esta experiência. O resumo da ópera é que Brasil entrou em decadência, e a escola pública se perverteu como instrumento da ascensão social. Seria ingênuo imaginar que esta degradação da promessa de equidade meritocrática pela educação não teria consequências nas escolas: desmotivação dos alunos e desmoralização dos professores.O pleno emprego foi, historicamente, o maior fator de mobilidade socialMesmo se ponderarmos fenômenos novos como o fim da longa etapa de migrações internas – do nordeste para o sudeste, e do sul para a nova fronteira agrícola no oeste – e a imigração de quase três milhões de jovens para o exterior; ou o impacto das políticas compensatórias sobre os setores mais vulneráveis e desprotegidos do povo, o principal fator que manteve, historicamente, a estabilidade da dominação burguesa no Brasil – estabilidade relativa, porque em comparação com os países vizinhos - foram taxas de desemprego muito baixas.
As ilusões reformistas das massas, ou seja, a esperança em mudanças negociadas pelos seus líderes sem a necessidade de grandes combates contra as classes dominantes, se fundamentavam na memória do intervalo entre os anos trinta e os anos setenta, quando a industrialização e urbanização permitiram uma intensa mobilidade social.O crescimento econômico acelerado que duplicava o PIB de dez em dez anos permitiu que a vida das amplas massas de origem rural, que partiam de condições de sobrevivência dramaticamente baixas, melhorasse. Essas ilusões reformistas permaneceram, mesmo depois que as condições históricas que tinham permitido as altas taxas de mobilidade social tinham desaparecido. Foram essas ilusões que garantiram a estabilidade do calendário eleitoral no Brasil desde 1985.Pesaram, também, os fatores históricos, mais ou menos invariáveis, como os medos “atávicos” herdados, geração após geração, e que remetem à baixa qualidade de organização independente da classe trabalhadora em relação aos patrões e ao Estado. A terrível herança da escravidão, os receios de uma insegurança social crônica, o sentimento de inferioridade de uma maioria iletrada, a tradição agrária e a inércia cultural, a história de repressão implacável contra as lideranças populares, a manipulação da miséria pelo coronelismo rural e pelo clientelismo urbano, a lumpenização de massas de jovens e o crescimento da delinqüência, todos estes fatores foram e são obstáculos na via da organização da luta dos trabalhadores no campo e nas cidades.
As pressões ideológicas das classes dominantes, também, pesam: enquanto permanecer o controle monolítico burguês sobre os meios de comunicação, sempre poderá renascer a ilusão de que existem saídas individuais para os filhos da pobreza. A ação coletiva baseada nos princípios de solidariedade de classe teve pela frente, portanto, muitos obstáculos.A educação não garante mais a mobilidade social ascendenteEis a primeira questão: a mobilidade social e o lugar da educação como instrumento de ascensão. A primeira constatação da realidade social no capitalismo periférico é que as possibilidades de ascensão social agora estão quase congeladas. A sociedade brasileira teve, durante algumas décadas entre 1930 e 1980, comparativamente à situação atual, uma mobilidade social significativa. Se analisarmos a origem social da maioria da população urbana adulta e, também, o que podíamos chamar o “repertório cultural” das gerações anteriores nas nossas próprias famílias, veremos que, com raras exceções, uma grande parcela foi, individualmente, favorecida pelo aumento da escolaridade de um período histórico anterior. Esse fenômeno é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. O padrão histórico dominante na história do Brasil foi outro.
Durante gerações nossos antepassados foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Os que nasciam filhos de escravos, não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros.No entanto, a sociedade brasileira entre 1930 e 1980, mesmo considerando-se os limites impostos pelo seu estatuto subordinado na periferia capitalista, foi uma das economias com mais dinâmica no mercado mundial. Perpetuaram-se as desigualdades, por suposto. Mas, existiu durante cinco décadas um capitalismo com taxas aceleradas de urbanização e industrialização. Os dois processos foram simultâneos, ainda que não tenham tido a mesma proporção em todo o país. O certo, todavia, é que existiu mobilidade social. O crescimento parece ter sido mais significativo que a escolarização, mas é provável que tenha ocorrido uma sinergia na confluência de causas. Logo, a promessa de que seria possível ir além dos limites do capitalismo agro-exportador, e fortalecer um crescimento apoiado na expansão do mercado interno e, portanto, viver melhor, através de reformas como uma educação pública universal – a percepção popular do nacional-desenvolvimentismo - era uma promessa que alimentava esperanças.
Garantia alguma coesão social para a estabilidade dos regimes políticos. A força de inércia das ilusões reformistas repousava nessa história. A sua superação exigirá uma experiência prática compartilhada por milhões.Quando raciocinamos neste horizonte de perspectiva, verificamos que a economia brasileira perdeu o impulso que teve até os anos oitenta. A questão decisiva é que o Brasil é hoje uma sociedade muito congelada, comparativamente, àquilo que ela foi. O capitalismo brasileiro do século XXI é um capitalismo com taxa de mobilidade social muito baixa, e a educação deixou de ser um trampolim social. O salário médio dos setores que alcançam uma escolaridade técnico-profissional como os operários qualificados, oscila pouco acima do salário médio. O daqueles com escolaridade elevada, ou seja, o ensino superior, mantém uma curva descendente contínua há mais de duas décadas: professores, quadros intermediários da administração pública ou privada, profissionais assalariados, como médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, etc.Todas as informações disponíveis confirmam que a possibilidade de se conquistar recompensas econômicas e sociais, ou uma vida mais segura e mais confortável, através do esforço individual de uma educação maior está reduzida. Além disso, a crise crônica da sociedade brasileira já foi percebida, pelo menos parcialmente, pelas massas trabalhadoras, e mesmo pelas camadas médias, ainda que esse mal estar não se manifeste, como nos anos oitenta, em uma elevação da participação política. Ainda que façam o possível e até o impossível para garantir uma escolaridade elevada para os seus filhos, a maioria da população assalariada está perdendo esperança no papel que a educação pode cumprir.
A função social da educação na sociedade é cada vez mais estabelecer a divisão do trabalho que vai permitir a perpetuação das relações sociais existentes. Ou seja, a educação não questiona as relações sociais, somente as perpetua.Uma outra forma de ilusão gradualista nas perspectivas de justiça social nos limites do capitalismo foi a esperança de que uma população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país. Se fosse assim, a Argentina ou a Coréia do Sul, dois exemplos de sociedades que conquistaram - a primeira no passado, a segunda mais recentemente - índices elevados de escolaridade, não seriam infernos de desigualdade social para os trabalhadores. Todas as promessas de que a educação seria o instrumento meritocrático que permitiria que, nos países de inserção periférica, cada um tivesse a sua justa função na sociedade, desmoronaram com a crise da globalização e dos ajustes neoliberais do final dos anos noventa.
A ideologia de que cada um tem o lugar social que merece é uma ideologia reacionária, porque naturaliza aquilo que não é natural. Legitima o que é anti-humano. A ideologia que justifica que os capitalistas cumprem uma função indispensável; que defende que o direito de herança ilimitado de fortunas (não raras vezes maiores que a economia de nações) é justa; que argumenta que a desigualdade social é inevitável, e a escola é o instrumento que permite a seleção que justifica a divisão do trabalho, é percebida como um fatalismo por milhões de pessoas.
Mas, ainda em crise, esta ideologia mantém influência entre as massas – porque as ilusões não morrem sozinhas - em especial entre os professores, que são, paradoxalmente, um dos instrumentos sociais de convencimento de que a escola poderia mudar a sociedade.A ordem capitalista não seria possível, de maneira duradoura, se a maioria das pessoas não acreditasse que esta divisão do trabalho, do dinheiro e da riqueza é algo razoável. O que está acontecendo é que de forma molecular, os setores mais organizados da classe trabalhadora estão perdendo as esperanças, embora ainda não tenham disposição de lutar. A desigualdade não é natural. Não é razoável vivermos numa sociedade em que a diferença entre o piso e o teto das remunerações varia de um para quinhentos. Como é possível aceitar que o trabalho de uma hora de alguém, como um poderoso acionista ou executivo das corporações, seja centenas de vezes mais valioso que o trabalho de outro?O atraso cultural da sociedade brasileira é responsabilidade do EstadoO segundo tema é a idéia de que nós vivemos numa sociedade culturalmente arcaica que não superou significativo atraso educacional. Uma aferição de qual é o nível de escolaridade e o repertório médio da sociedade de hoje em relação ao que ela foi no passado mas, também, em comparação com outras sociedades da periferia, como os países do Cone Sul, não é nada animadora. O Brasil é uma sociedade que tem uma forte defasagem cultural. A herança da escravidão tardia, da inserção dependente no mercado mundial, da urbanização atrasada e da industrialização lenta foi terrível. Somos uma nação de semi-letrados.O balanço é devastador: o número de estudantes matriculados aumentou, mas, para desespero nosso, tão lentamente, que a melhora é quase imperceptível. O número de certificados emitidos cresceu, mas a qualidade do ensino caiu. Mesmo com uma presença maior das crianças nas escolas, temos ainda pelo menos 14,6 milhões de analfabetos.
Os iletrados são, contudo, incontáveis. O analfabetismo funcional – incapacidade de atribuir sentido ao texto escrito em norma culta - está na escala das dezenas de milhões, talvez mais da metade dos brasileiros com mais de quinze anos. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, pelo menos um em cada três não concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio e, mesmo em São Paulo, menos de 20% estão matriculados em cursos superiores, sendo a maioria ampla em faculdades particulares. Segundo Marcio Pochmann, do Instituto de Economia da Unicamp e atual presidente do IPEA: “no Chile, 80% dos estudantes de 15 a 17 anos estão no ensino médio. Se quisermos chegar lá, temos que incluir 5 milhões de jovens, formar 510 mil professores e construir 47 mil salas”.[6]O Estado brasileiro, mesmo na forma do regime democrático - não importando quais os partidos na sua gestão, se o PMDB, PSDB, PFL ou PT - continuou drenando recursos dos serviços públicos para o Capital. Políticas sociais focadas e compensatórias, como o Bolsa Família e outros que o antecederam, não obtiveram resultados significativos, no que diz respeito ao desempenho escolar. O Estado ao serviço do capital se demonstrou historicamente incapaz de garantir uma educação pública e universal. Muitas décadas nos separam do início do processo de urbanização e industrialização, e a desigualdade material e cultural não diminuiu.O atraso cultural da sociedade brasileira tem, entre outras manifestações, uma expressão terrível. O Brasil é um país de iletrados e semi-analfabetos. É cruel constatar isto assim, todavia, a realidade é arrasadora. Não é fácil abordar este tema porque a maioria dos trabalhadores nutre um sentimento de inferioridade cultural que é indivisível da humilhação social provocada pela pobreza. Todos os que nasceram nas classes trabalhadoras têm, em maior ou menor medida, a percepção de que sabem muito menos do que gostariam de saber e, portanto, sentem inseguranças culturais. Mas, essa dor é muito mais intensa nas amplas massas do nosso país. Não é só uma percepção subjetiva. Há um abismo educacional verdadeiro entre nossas classes populares e as classes médias e proprietárias.
É um assunto meio tabu, porque é desconfortável. Em geral o brasileiro médio se relaciona com sua pobreza material com dificuldades, mas se relaciona com muito mais constrangimento com sua ignorância. É um tema um pouco intimidador, porém, inescapável para quem trabalha com educação.A sociedade brasileira do início do século XXI continua uma sociedade iletrada. A burguesia fracassou em trazer o nosso povo para o que podemos chamar de um acervo cultural mínimo do século XX, que é dominar a matemática e a língua. Acontece que educação em um país com a nossa proporção de jovens é um serviço caro. O Estado não poderia remunerar o capital – a remuneração da dívida pública consome quase a metade da receita pública - e garantir, ao mesmo tempo, a educação pública. Inventaram, em conseqüência, um sistema brutal: cada classe tem a sua escola. O ensino passou a ser uma obrigação de responsabilidade familiar.A grande maioria do nosso povo não tem outro instrumento de comunicação que a língua coloquial. A televisão não é somente o grande canal de comunicação. Para a maioria é o único, porque estão prisioneiros da oralidade. O texto escrito é um obstáculo invencível. A norma culta do texto continua terra incógnita: um repertório desconhecido para a esmagadora maioria do povo. Os números oficiais consideram o analfabetismo como um fenômeno histórico residual. Reconhecem algo abaixo de 15% da população com quinze anos ou mais analfabeta. O ultimo número de 2003, registrava 12,8% de analfabetos. Aqueles que trabalham em educação sabem qual é, na verdade, a dificuldade que nós temos de enfrentar. Pelo menos metade do povo brasileiro reconhece as letras, reconhece que as letras são símbolos gráficos que reproduzem sons, os fonemas, mas o domínio da escrita não é isso.A dinâmica histórica deste atraso cultural não é prometedora, se compararmos o Brasil de hoje com o de nossos pais. O que aconteceu neste intervalo de meio século em que o Brasil deixou de ser uma sociedade agrária é que o acesso à escola pública realmente se massificou, mas a qualidade do ensino público é atroz. Hoje, a grande maioria das crianças brasileiras com até quatorze anos de idade, em números que superam os 90%, está matriculada na escola pública. Mas, esta escola não corresponde às suas necessidades. O fracasso escolar pode se manifestar de diferentes formas: repetição em alguns Estados, ou evasão em outros, ou ainda péssimos resultados nas avaliações por provas. Pode ser um fracasso oculto pela promoção automática, como em São Paulo.Temos uma situação na qual a divisão social se manifesta através do abismo que separa a escola pública da escola privada. Mercantilizaram a educação. O capitalismo brasileiro criou um monstro social: o apartheid educacional. A escola privada hoje no Brasil não é somente um fenômeno educacional, é um fenômeno econômico.[7]
O faturamento do ensino privado já tem peso significativo no PIB; foi estimado pelo IBGE, para o ano de 2004, acima de R$ 50 bilhões. Talvez nos surpreenda, mas uma das atividades menos regulamentadas pela Receita ou, se quiserem, uma das atividades em que há mais lavagem de dinheiro, é a educação. De tal maneira é a sonegação, que o principal projeto educacional do governo Lula foi a isenção fiscal do ensino superior em troca de bolsas: o ProUni, que renegociou dívidas em troca de matrículas.Este desastre político-educacional, um apartheid social na educação, tem uma história. Os governos que representam as classes proprietárias promoveram, objetivamente, através de seus variados partidos, o desmantelamento da escola pública, cortando as verbas. Comprometeram a qualidade do ensino na mesma proporção que a expansão do sistema público incorporava a maioria dos filhos do povo. O resultado é que a população em idade escolar dentro das escolas de ensino obrigatório cresceu atingindo quase a universalidade, mas a escola se transformou em um depósito de crianças e jovens, sem condições mínimas de funcionamento.No Brasil, se constituiu uma camada média urbana mais ampla a partir dos anos cinqüenta que, com a crise de estagnação aberta nos anos oitenta e a decadência do ensino público, se viu obrigada a retirar seus filhos das escolas públicas e os colocou na escola privada. Esse processo foi potencializado porque toda a estrutura educacional foi organizada em função de um elemento exógeno, exterior ao aprendizado, o vestibular.
O Brasil tem um sistema de acesso à universidade que é peculiar, é uma instituição brasileira, o exame vestibular. Ele ordena todo o edifício, e explica a privatização.Aqueles que já passaram pela experiência do vestibular não valorizam, freqüentemente, o lugar que ele tem na estrutura educacional. Mas, a morfologia da estrutura educacional no Brasil tem na sua raiz o vestibular. A diferença entre ensino privado e ensino público fundamental e médio é que o aluno que está no ensino público, tem muito menos possibilidades de ser bem sucedido numa experiência incontornável que se chama vestibular. E o vestibular separa os jovens entre aqueles que vão estudar na universidade pública, que são as melhores do Brasil e são gratuitas, e aqueles que vão estudar no ensino privado. E serão estes a maioria dos professores.A mercantilização do ensino destruiu a carreira docenteO terceiro tema é uma avaliação da situação do ensino público. A educação brasileira contemporânea agoniza, como já vimos, porque foi completamente mercantilizada. O capitalismo brasileiro quase destruiu a escola pública, e se não completou sua destruição até hoje foi, em primeiro lugar, pela resistência dos educadores da escola pública que estão lutando como leões e leoas há, pelo menos, trinta anos. Não é somente uma situação conjuntural.
A escola primária está em crise, as escolas secundárias são impossíveis de administrar, o ensino médio e superior foi privatizado em larga escala.A promessa liberal do ensino meritocrático – “estudarás, serás recompensado” - não tem correspondência com a realidade. Este discurso encontra uma contra-evidência esmagadora e muito simples. Os filhos de diferentes classes estudam em escolas separadas: segregação educacional. Isto não é secundário. Estamos tão habituados - até resignados - com o avanço da educação privada que já não ficamos chocados. A privatização da educação é, por suposto, um processo mundial. Mas, em vários países europeus, os filhos das diferentes classes estudam na mesma escola, do primário até á universidade. O critério de acesso para a Sorbonne, admitindo-se a classificação no exame de conclusão do ensino médio, permanece sendo o certificado de residência. Claro que viver no Quartier Latin não é barato. No entanto, é mais barato que pagar US$90.000 de mensalidades por ano em Harvard. No Brasil, qual é a possibilidade de encontrarmos na escola pública um filho de um burguês? Ao vivo e a cores, a maioria do povo brasileiro nunca viu e nunca verá um grande empresário- a menos que seja o seu patrão -, muito menos na sala de aula, ao lado dos seus filhos.A promessa meritocrática faliu e com ela a escola pública. Todos os jovens das classes populares sabem que a escola em que eles estão é uma escola na qual o seu destino social já está traçado. Aqueles que estão na escola pública sabem que, por maior que seja o seu talento, a chance de mobilidade social é reduzida, e os filhos da classe média, que estão na escola privada, sabem que vão ter que batalhar, desesperadamente, para conseguir uma vaga na universidade pública. Mesmo para um jovem de classe média argentino, a comemoração de quem é aprovado na USP – a família toda de lágrimas nos olhos, como se tivessem ganhado a loteria federal – é incompreensível.
Já os poucos que receberão herança, e vão viver da renda do capital, estão em absoluta tranqüilidade, fazendo faculdades privadas no Brasil ou no exterior. A escola pública afundou em decadência. Ela foi destruída por vários processos. Além da privatização, o principal foi a desvalorização da carreira docente, a degradação profissional dos professores.O que é a degradação social de uma categoria? Na história do capitalismo, várias categorias passaram em diferentes momentos por promoção profissional ou por deterioração profissional. Houve uma época no Brasil em que os “reis” da classe operária eram os ferramenteiros: nada tinha maior dignidade, porque eram aqueles que dominavam plenamente o trabalho no metal, conseguiam manipular as ferramentas mais complexas e consertar as máquinas. Séculos antes, na Europa, foram os marceneiros, os tapeceiros, e em muitas sociedades os mineiros foram bem pagos. Houve períodos históricos na Inglaterra – porque a aristocracia era pomposa - em que os alfaiates foram excepcionalmente bem remunerados. Na França, segundo alguns historiadores, os cozinheiros. Houve fases do capitalismo em que o estatuto do trabalho manual, associada a certas profissões, foi maior ou menor. A carreira docente mergulhou nos últimos vinte e cinco anos numa profunda ruína. Há, com razão, um ressentimento social mais do que justo entre os professores. A escola pública entrou em decadência e a profissão foi, economicamente, desmoralizada, e socialmente desqualificada, inclusive, diante dos estudantes.Os professores foram ideologicamente desqualificados diante da sociedade. O sindicalismo dos professores, uma das categorias mais organizadas e combativas, foi construído como resistência a essa destruição das condições materiais de vida. Reduzidos às condições de penúria, os professores se sentem vexados. Este processo foi uma das expressões da crise crônica do capitalismo. Depois do esgotamento da ditadura, simultaneamente à construção do regime democrático liberal, o capitalismo brasileiro parou de crescer, mergulhou numa longa estagnação. O Estado passou a ser, em primeiríssimo lugar, um instrumento para a acumulação de capital rentista. Isso significa que os serviços públicos foram completamente desqualificados.Dentro dos serviços públicos, contudo, há diferenças de grau. As proporções têm importância: a segurança pública está ameaçada e a justiça continua muito lenta e inacessível, mas o Estado não deixou de construir mais e mais presídios, nem os salários do judiciário se desvalorizaram como os da educação; a saúde pública está em crise, mas isso não impediu que programas importantes, e relativamente caros, como variadas campanhas de vacinação, ou até a distribuição do coquetel para os soropositivos de HIV, fossem preservados. Entre todos os serviços, o mais vulnerável foi a educação, porque a sua privatização foi devastadora. Isso levou os professores a procurarem mecanismos de luta individual e coletiva para sobreviverem.
Há formas mais organizadas de resistência, como as greves, e formas mais atomizadas, como a abstenção ao trabalho. Não é um exagero dizer que o movimento sindical dos professores ensaiou quase todos os tipos de greves possíveis. Greves com e sem reposição de aulas. Greves de um dia e greves de duas, dez, quatorze, até vinte semanas. Greves com ocupação de prédios públicos. Greves com marchas. E muitas e variadas formas de resistência individual: a migração das capitais dos Estados para o interior onde a vida é mais barata; os cursos de administração escolar para concursos de diretor e supervisor; transferências para outras funções, como cargos em delegacias de ensino e bibliotecas. E, também, a ausência. Tivemos taxas de absenteísmo, de falta ao trabalho, em alguns anos, inverossímeis. Além disso, temos uma parcela dos professores, inquantificável, que são aqueles colegas que freqüentam a escola, mas não dão mais aulas. Entram na sala de aula, passam uma atividade na lousa e dispensam os alunos – faz quem quer, quem não quer sai –, já desistiram de dar aulas, é o último degrau. Cria-se uma situação de conflito latente entre os professores que dão aula e os professores que não dão aula. Por último, uma parcela dos professores desabou. “Surtaram”: as doenças profissionais são elevadíssimas, entre elas, a depressão, que é, hoje, epidêmica.O papel defensivo do movimento sindical dos professores para a educação públicaO quarto tema é a defesa do papel do movimento sindical dos professores em defesa da escola pública. A acusação de que as greves explicam porque o desempenho escolar brasileiro é baixo, é de um cinismo horroroso. O corporativismo sindical pode ser nocivo. Mas, se os professores não tivessem ido à luta, a situação das escolas não seria melhor, seria, irrefutavelmente, pior. Um programa para a educação tem que primeiro identificar quem são os sujeitos sociais da luta pela mudança. Não é sequer razoável pensar na luta por uma melhor escola pública, se o projeto for construído “demonizando” os professores. O partido X diz na campanha eleitoral “o nosso programa para a educação é muito bom, e construímos tantas escolas”. Aí o partido Y responde “o nosso programa para a educação é melhor, e fizemos mais escolas que vocês”. Esquecem que construir escolas não é o bastante. Esquecem que não tiveram coragem de enfrentar o lobby do ensino pago.Um programa socialista para a educação brasileira começa por um resgate do lugar da educação e dos educadores. Os principais agentes de transformação da educação serão os estudantes e os trabalhadores da educação, pois são eles que a defendem contra os ataques do Estado. Em cada momento, qual será, entre os estudantes e os professores, o segmento que estará na vanguarda? Este é um falso problema. É um assunto sobre o qual não deveríamos ter um critério rígido; isto é indeterminado, é incerto. A experiência histórica sugere que, em alguns momentos, os professores serão vanguarda e, em outros, os estudantes.Um projeto para a reconstrução da escola pública e gratuita deve ser, também, um plano para a educação dos educadores. Ensina a sabedoria popular que podemos conduzir um cavalo até à água, mas não podemos obrigá-lo a beber. Não haverá uma nova educação sem a mobilização livre dos sujeitos ativos no processo educacional. Sem participação livre não haverá gestão democrática da escola, e sem gestão democrática não haverá melhoria da educação pública.[8]Essa não é a opinião dos gestores da rede pública. Eles defendem uma campanha, perdoem a crispação das palavras, imunda, que transforma os professores, de vítimas, em responsáveis pela crise da escola, criminalizando as greves de resistência.
O Estado defende que a vanguarda é o governo, o que seria cômico se não fosse trágico. Como transferem a responsabilidade do fracasso escolar para os professores e os estudantes, insistem em mobilizar os pais para dentro das escolas, argumentando que a pressão externa da comunidade poderá melhorar a gestão. Os neoliberais “descobriram” que o problema da educação não é o corte verbas, mas a má administração. Uma campanha abjeta na televisão, apresenta o trabalho voluntário como a solução da escola pública, o que seria, evidentemente, risível, se não fosse desprezível.Recordando a epígrafe de Marx que abre este artigo, transformaremos a escola, nos transformando a nós mesmos.
Lutamos por uma outra escola, porque nós mesmos lutamos para sermos diferentes daquilo que fomos e somos. Não haverá uma nova escola, se os professores não acreditarem nela. Não haverá uma nova escola, se a juventude brasileira não for chamada a construir essa nova escola, e não tiver paixão política pelo projeto.Um programa para a educação passa por investimentos maciços na educação, porque nós acreditamos que é justamente o socialismo ou, pelo menos, a primeira fase de construção do socialismo que vai, pela primeira vez na história do Brasil, transformar em experiência social o que hoje não são senão utopias.
O projeto do socialismo é a implantação da equidade. A equidade é a meritocracia que não existe na sociedade brasileira de hoje. Mas, a equidade não é mesma coisa que a igualdade. A igualdade é “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, um critério de distribuição imortalizado por Marx e que foi tomada por todos os igualitaristas do final do século XIX. Na primeira fase de transição, no entanto, o critério de distribuição deveria ser “de cada um segundo suas necessidades; a cada um segundo o trabalho realizado”. Isso é a meritocracia, é a equidade: mais igualitária que o capitalismo, mas ainda não é a igualdade social.
O projeto socialista é transformar a escola num dos instrumentos da equidade social. Esse projeto só é possível se os educadores compreenderem que eles têm que estar disponíveis para serem, permanentemente, reeducados. Se eles compreenderem que o processo de educação é permanente processo de reavaliação e que, portanto, essa vida que nós escolhemos é uma vida em que ensinar e aprender não se encerra nunca. A primeira aprendizagem que existe nesta profissão, é que para ser professor será preciso ser eternamente estudante. Aquele que está sempre disposto a se colocar no lugar do outro.
O lugar da escola hoje é um encontro de sociabilidade, mas não é um encontro mais com o tesouro científico e o repertório cultural que a humanidade construiu. Os professores se sentem tristes, sendo a última linha de defesa da escola pública. Nós sentimos essa angústia, que é reconhecer que a escola agoniza. Nós somos, contudo, os guardiões de uma promessa: que através da arte, da cultura, da ciência que as gerações anteriores nos legaram, poderemos construir um mundo melhor.
Referências Bibliográficas
DAVIES, Nicholas. Fundeb: a redenção da educação básica? Campinas, SP: Autores Associados, 2008.
LEHRER, Roberto. Um Novo Senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo, in Outubro n°3. São Paulo: Xamã, 1999.
SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. São Paulo, Cortez, 1983
MARX, Karl. Terceira Tese sobre Feurbach, Obras Escolhidas, São Paulo, Editora Alfa-Omega, s/d, p.208/9.
Alguns dados comparativos podem ser encontrados no site do IBGE: http://www.ibge.gov.br/paisesat/. Pesquisa em 10/08/2009.
Outros podem ser pesquisados no site de estatísticas da União Européia em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/education/data/main_tables. Pesquisa em 10/08/2009.
A novidade no financiamento da educação no Brasil nos últimos anos foi o Fundeb: Fundo de manutenção e desenvolvimento da Educação Básica e de valorização dos profissionais da Educação. O fundo é composto por percentuais fixos das receitas estaduais (6,66% da arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores, ou IPVA; 16,66% do Fundo de Participação dos Municípios, ou FPM; 16,66% do Fundo de Participação dos Estados, ou FPE; entre outros) e uma complementação do Governo Federal: R$2 bilhões em 2007, e R$5 bilhões previstos em 2009.
O Fundeb foi construído para permitir a instituição, a partir de 2009, do Piso nacional de professores de R$950,00 mensais para uma jornada de 40hs com 1/3 da jornada sendo fora de sala de aula para preparação. Mesmo considerando-se que este piso é inferior ao salário médio das principais regiões metropolitanas, e ao salário médio na indústria, estimados entre R$1.100,00 e R$1.200,00, vários governadores, como Serra em são Paulo, se posicionaram em contra do piso. Nicholas Davies publicou um livro de referência sobre o tema, onde conclui que com o Fundeb não está garantido, nos maiores Estados, um aumento de verbas para a educação.http://www.ibge.gov.br/paisesat/. Consulta em 10/08/2009.A repercussão da pesquisa do economista norte-americano Martin Carnoy, que comparou a educação brasileira à cubana para chegar à conclusão que as redes públicas de ensino dão pouca prioridade para a didática.
Em outras palavras, os mestres aprendem mais na faculdade sobre teorias pedagógicas e menos sobre o que fazer na sala de aula. Eis a conclusão do editorial da Folha de São Paulo: “São eles: didática, programação, supervisão e permanência na escola. Além de treinamento didático, os mestres precisam ter clareza sobre o conteúdo que devem ensinar, e quando. É o segundo fator.
Em alguns sistemas públicos, como o do Estado de São Paulo, a carência começou a ser resolvida com a edição de guias curriculares, que organizam a matéria numa seqüência pensada para favorecer a assimilação.De nada adiantam os guias, contudo, sem o terceiro componente, supervisão e controle sobre o cumprimento da programação. São atividades quase desconhecidas no ensino oficial.
Há Estados em que o cargo de supervisor nem sequer existe. Onde há supervisores, por outro lado, eles raramente visitam as escolas e menos ainda as salas de aula, para inteirar-se do que de fato acontece nelas”.
www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1108200901.htm Consulta em 11/08/2009.Bia Barbosa, in Carta Maior, 02/01/06, http://agenciacartamaior.uol.com.br/Roberto Lehrer tem realizado um conjunto de estudos sobre o papel do Banco Mundial no Brasil, desde o final dos anos sessenta, na orientação de uma política educacional que favorece a privatização da educação, sob a alegação de que os custos da universalização do acesso ao ensino gratuito seriam desproporcionais para a capacidade do Estado.
A principal pressão do Banco Mundial tem sido no sentido de introduzir a cobrança de mensalidades nas Universidades públicas.A referência mais célebre para o debate sobre a gestão democrática é o livro de Demerval Saviani, do hoje longínquo ano de 1983, Escola e Democracia, no qual o autor invocou a metáfora de Lênin sobre a curvatura da vara, para ilustrar a idéia de que, quando uma vara está inclinada ao extremo em uma direção, para se poder encontrar o ponto de equilíbrio, é necessário vergá-la até o extremo oposto. Ao final da ditadura, a mobilização sindical dos professores, mesmo os seus excessos eram um fenômeno progressivo, depois de décadas de repressão. Seria necessário, segundo Saviani, um giro “conteúdístico” para garantir à juventude operária e popular o acesso ao conhecimento como repertório universal da cultura humana.
*Valerio Arcary é professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), e doutor em História pela USP
Fonte: APEOESP SUBSEDE SUL

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