Sílvia Suppo
O Que Resta da Ditadura propõe uma reflexão sobre o período e reclama o direito à memória e à verdade.
O Que Resta da Ditadura propõe uma reflexão sobre o período e reclama o direito à memória e à verdade.
Por Francisco Foot Hardman
Os monstros continuam soltos e ativos. Quando começava a escrever este texto, veio a notícia: Silvia Suppo, testemunha-chave contra torturadores da ditadura militar argentina, ex-prisioneira aos 18 anos (1976), quando foi estuprada por três agentes da repressão, de que resultaram gravidez e aborto feito por seus algozes, acaba de ser assassinada, segunda-feira passada, na pequena cidade de Rafaela, província de Santa Fé, logo após ter feito depoimento contundente à justiça onde refizera, cara a cara com alguns dos torturadores, todo o itinerário de seu martírio. Seu irmão Hugo, pesquisador estabelecido na França, faz agora circular na internet uma petição às autoridades argentinas e brasileiras para que mais esse crime remanescente da ditadura não seja esquecido sob o manto do medo e da impunidade.
Lembrar da morte bárbara de Sílvia Suppo - a do seu corpo agora extinto pelo arco da aliança duradoura de seus antigos carrascos - não representa apenas um toque de atualidade ao tema dessa importante intervenção coletiva e pública que Edson Teles e Vladimir Safatle reuniram em "O Que Resta da Ditadura", aquilo que os jornalistas denominam gancho. Pois que a dolorosa contemporaneidade do assunto deste livro está "enganchada", há muito, em nossos corpos e mentes.
Na difícil tarefa de reflexão crítica que seus 15 ensaios propõem, difícil diante dos arautos poderosos do Partido da Amnésia, presentes não só nas agremiações políticas (do PMDB, DEM e PP, herdeiros diretos das siglas consentidas depois do golpe de 64 ao PSDB e PT, partidos da nova ordem do "esqueça-o-que-fui") mas na mídia (a ideologia da "ditabranda" é uma de suas faces mais amenas), no Executivo, Legislativo e Judiciário (de ex-operadores civis do regime militar a defensores abertos da tortura como salvaguarda excepcional do Estado), vale não esquecer que a permanência de estruturas e mecanismos de exceção não é privilégio da sociedade brasileira, mas possui lastro forte em outros países latino-americanos.
Os avanços da punição a ditadores e torturadores na Argentina, no Chile e Uruguai não livrou essas nações da sanha de criminosos incrustados no aparelho estatal e contando muita vez com redes de suporte não desprezíveis na sociedade civil. A democracia liberal é uma ideologia deslocada não só aqui, mas também nos Estados Unidos de Guantánamo ou na Itália berlusconiana dos comitês de vigilância contra imigrantes. As grandes corporações financeiras fizeram e fazem do Estado de direito um exercício digressivo acadêmico capaz de girar entre boa-fé e mistificação.
Quem ler o livro verá como o concurso de vários campos do saber e especialistas tão interessantes quanto diversos pode tornar o debate sobre o tema digno de sua complexidade. Assim, na esfera da exceção jurídica, as penas afiadas de Flávia Piovesan e Glenda Mezarobba demonstram à larga o anacronismo flagrante da lei de anistia do governo Figueiredo em face de todas as convenções do direito internacional contra a tortura subscritas pelo Estado brasileiro.
E mais: a ênfase na reparação financeira a perseguidos e familiares de mortos serve, perversamente, para nublar a questão do direito à memória e à verdade. Já os estudos bem informados de Gilberto Bercovici, Jorge Zaverucha e Paulo Ribeiro da Cunha põem o dedo na presença do entulho autoritário na esfera constitucional, inclusive na festejada Constituição "cidadã" de 1988, tanto no âmbito da administração pública quanto, com destaque, na continuidade da militarização de parte considerável das forças policiais.No amplo mosaico das manifestações culturais, as relações jamais resolvidas entre trauma, memória e esquecimento, com todas suas sequelas, são examinadas, com engenho e arte, nos textos de Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Beatriz Vieira, Jeanne Marie Gagnebin e Tales Ab"Sáber, todos imbuídos da melhor radicalidade, a que tenta não apenas esclarecer mas convida a pensar e, sobretudo, a agir.
As análises do filme Corpo, de Rosana Foglia e Rubens Rewald (Ab"Sáber) e do conto O Condomínio, de Luis Fernando Verissimo (Ginzburg) aparecem como leituras artísticas notáveis de nossos traumas por tratar.A terceira e última parte toca diretamente na questão do bloqueio da política. Além dos artigos com que os dois organizadores comparecem ao volume (Vladimir, sobre violência e legalidade; Edson, numa instigante comparação entre Brasil e África do Sul), Janaína Teles faz-se presente com as vozes dos familiares de mortos e desaparecidos que persistem na resistência ao arbítrio e na defesa do direito à memória, à verdade e à justiça.
Essa seção abre com um longo ensaio de Paulo Arantes sobre a persistência da exceção como regra na história do século 20, o Brasil aí muito bem compreendido. Arantes cada vez mais se revela como exímio historiador da cena contemporânea: seu texto faz as vezes de grande síntese introdutória do conjunto de contribuições. Valeria, talvez, lê-lo em primeiro lugar.
Ou por último. Já que no fim, o texto do escritor Ricardo Lísias, à guisa de pretenso manifesto, fica completamente fora do tom, não por estilo só, mas por mal esconder, na sua pretensa metralhadora giratória, confusa, certo narcisismo insolente que é, sabe-se logo, impotente. "Dar voz de prisão" ao coronel Ustra, pode soar radical-chique, mas expõe ilusão das mais perigosas.Nessa trilha, nós não temos o direito de confundir fantasia com realidade. Não há licença artística para tal. A sombra de Sílvia Suppo, aqui e agora, e com ela a de milhares que foram exterminados, reclama muita lucidez.
E resistência continuada.
Fonte: Editoa Boitempo
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