Por Lev Vygotsky
A Psicologia científica estabeleceu como sua tese básica o fato que o tipo psicológico do homem moderno é um produto de duas linhas evolutivas. Por um lado, este tipo moderno de ser humano se desenvolveu em um processo prolongado de evolução biológica da qual a espécie homo sapiens surgiu com todas as suas características inerentes do ponto de vista da estrutura corporal, das funções de órgãos diversos e de certos tipos de reflexos e atividades instintivas que foram fixados hereditariamente e que são transmitidos de geração a geração.
Mas, juntamente com o início da vida social e histórica humana e das mudanças fundamentais nas condições às quais ela teve que se adaptar, mudou também, muito radicalmente, o próprio caráter do curso subseqüente da evolução humana. Até onde se pode julgar, com base no material efetivo disponível que foi obtido principalmente comparando os tipos biológicos de povos primitivos às fases mais primitivas de seu desenvolvimento cultural com representantes das raças mais culturalmente avançadas, até onde esta questão pode ser resolvida através de teoria psicológica contemporânea, há razões fortes para supor que o tipo biológico humano mudou notavelmente pouco durante o curso do desenvolvimento histórico do homem.
Isto não quer dizer, é claro, que a evolução biológica paralisou-se e que a espécie humana é uma quantidade estável, inalterável, constante, mas sim que as leis fundamentais e os fatores essenciais que dirigem o processo de evolução biológica retrocederam ao plano de fundo e, ou decaíram completamente, ou tornaram-se uma parte reduzida ou sub-dominante das novas e mais complexas leis que governam o desenvolvimento social humano.
Realmente, a luta pela sobrevivência e a seleção natural, as duas forças motrizes da evolução biológica no mundo animal, perdem a sua importância decisiva assim que passamos a considerar o desenvolvimento histórico do homem. As novas leis que regulam o curso da história humana e que regem o processo de desenvolvimento material e mental da sociedade humana, agora tomam os seus lugares.Como um indivíduo só existe como um ser social, como um membro de algum grupo social em cujo contexto ele segue a estrada do desenvolvimento histórico, a composição de sua personalidade e a estrutura de seu comportamento reveste-se de um caráter dependente da evolução social cujos aspectos principais são determinados pelo grupo. Já nas sociedades primitiva, que só há pouco estão dando os seus primeiros passos ao longo da estrada do desenvolvimento histórico, a completa constituição psicológica dos indivíduos pode ser vista como diretamente dependente do desenvolvimento de tecnologia, do grau de desenvolvimento das forças de produção e da estrutura daquele grupo social ao qual o indivíduo pertence.
Pesquisas no campo da psicologia étnica forneceram provas incontroversas de que estes fatores, cuja interdependência intrínseca foi estabelecida pela teoria do materialismo histórico, são os componentes decisivos da psicologia integral do homem primitivo.
Em nenhum outro lugar, de acordo com Plekhanov [1], esta dependência da consciência relativa ao modo de vida manifesta-se de maneira mais óbvia e direta que na vida do homem primitivo. Isto ocorre por serem os fatores que realizam a mediação entre o progresso tecnológico e o psicológico ainda muito deficientes e primitivos, esta é a razão pela qual esta dependência pode ser observada quase que em seu estado bruto.
Mas uma relação muito mais complicada entre estes dois fatores pode ser observada em uma sociedade altamente desenvolvida que adquiriu uma estrutura de classes complexa. Aqui a influência da base sobre a superestrutura psicológica do homem não se dá forma direta, mas mediada por um grande número de fatores materiais e espirituais muito complexos. Mas, até mesmo aqui, a lei fundamental do desenvolvimento histórico humano, que proclama serem os seres humanos criados pela sociedade na qual vivem e que ela representa o fator determinante na formação de suas personalidades, permanece em vigor.
Do mesmo modo que a vida de uma sociedade não representa um único e uniforme todo, e a sociedade ela mesma é subdividida em diferentes classes, assim também, não pode ser dito que a composição das personalidades humanas representa algo homogêneo e uniforme em um dado período histórico, e a psicologia tem que levar em conta o fato básico que a tese geral que foi formulada agora mesmo, só pode ter uma conclusão direta, confirmar o caráter de classe, natureza de classe e distinções de classe que são responsáveis pela formação dos tipos humanos.
As várias contradições internas que são encontradas nos diferentes sistemas sociais encontram sua expressão tanto no tipo de personalidade quanto na estrutura da psicologia humana naquele período histórico. Nas descrições clássicas do período inicial do capitalismo, Marx enfatiza freqüentemente o tema da corrupção da personalidade humana que é provocada pelo crescimento da sociedade capitalista industrial.
Em um dos extremos da sociedade, a divisão entre o trabalho intelectual e o físico, a separação entre a cidade e o campo, a exploração cruel do trabalho da criança e da mulher, pobreza e a impossibilidade de um desenvolvimento livre e completo do pleno potencial humano, e no outro extremo, ócio e luxo; disso tudo resulta não só que o tipo humano originalmente único torna-se diferenciado e fragmentado em vários tipos nas diversas classes sociais que, por sua vez, permanecem em agudo contraste umas às outras, mas também na corrupção e distorção da personalidade humana e sua sujeição a um desenvolvimento inadequado, unilateral em todas estas diferentes variantes do tipo humano.
‘Juntamente com a divisão de trabalho’, diz Engels, ‘o próprio homem foi subdividido’[2] de acordo com Ryazanov, ‘toda forma de produção material especifica alguma divisão social do trabalho, e que é responsável por sua divisão espiritual. A começar pela corrupção da sociedade primitiva, já podemos observar a seleção de várias funções espirituais e organizacionais em espécies e subespécies determinadas correspondentes ao esquema da divisão social de trabalho’[3]. Mais adiante Engels diz:
"Já a primeira grande divisão do trabalho, a divisão entre a cidade e o campo, condenou a população rural a milênios de entorpecimento mental, e os moradores de cidade à escravização, cada um segundo seu trabalho particular. Destruiu a base para desenvolvimento espiritual do primeiro, e a do físico para o último. Se um camponês é o mestre de sua terra e o artesão de sua arte, então, em grau nada menor, a terra governa o camponês e a arte o artesão. A divisão do trabalho causou ao homem sua própria subdivisão. Todas as demais faculdades físicas e espirituais são sacrificadas a partir do momento que se desenvolve somente um tipo de atividade".
"Esta degeneração do homem avança à medida que a divisão do trabalho alcança seu nível mais alto na manufatura. A manufatura ‘quebra’ o ofício do artesão em operações fracionadas, atribui, na qualidade de vocação, cada uma delas a um trabalhador distinto e os acorrenta a uma operação fracionária específica, a uma ferramenta específica de trabalho para o resto da vida..."
"E não só os trabalhadores, mas também as classes que os exploram diretamente ou indiretamente, que são escravizadas pelos instrumentos de suas atividades, como resultado da divisão de trabalho: os burgueses mesquinhos, por seu capital e desejo por lucro; o advogado pelas idéias jurídicas ossificadas que o governam como uma força independente; ‘as classes educadas’ em geral, por suas limitações locais particulares e unilaterais, suas deficiências físicas e miopia espiritual. Estão todos mutilados pela educação que os treina para uma certa especialidade, pela escravização vitalícia a esta especialidade, até mesmo se esta especialidade é fazer absolutamente nada." [4]Isto é o que Engels escreveu em ‘O Anti-Dühring’. Nós temos que proceder da suposição básica que produção intelectual é determinada pela forma de produção material.
"Assim, por exemplo, no capitalismo é encontrada uma forma diferente de produção espiritual daquela prevalecente durante a Idade Média. Cada forma historicamente definida de produção material tem sua forma correspondente de produção espiritual, e isto, por sua vez, significa que a psicologia humana, que é o instrumento direto desta produção intelectual, assume uma forma específica a cada fase determinada do desenvolvimento". Esta incapacitação dos seres humanos, este desenvolvimento unilateral e distorcido das suas várias capacidades, que Engels descreve, e que surge com a divisão entre cidade e campo, está crescendo a uma enorme velocidade devido à influência da divisão tecnológica de trabalho.
"Já a primeira grande divisão do trabalho, a divisão entre a cidade e o campo, condenou a população rural a milênios de entorpecimento mental, e os moradores de cidade à escravização, cada um segundo seu trabalho particular. Destruiu a base para desenvolvimento espiritual do primeiro, e a do físico para o último. Se um camponês é o mestre de sua terra e o artesão de sua arte, então, em grau nada menor, a terra governa o camponês e a arte o artesão. A divisão do trabalho causou ao homem sua própria subdivisão. Todas as demais faculdades físicas e espirituais são sacrificadas a partir do momento que se desenvolve somente um tipo de atividade".
"Esta degeneração do homem avança à medida que a divisão do trabalho alcança seu nível mais alto na manufatura. A manufatura ‘quebra’ o ofício do artesão em operações fracionadas, atribui, na qualidade de vocação, cada uma delas a um trabalhador distinto e os acorrenta a uma operação fracionária específica, a uma ferramenta específica de trabalho para o resto da vida..."
"E não só os trabalhadores, mas também as classes que os exploram diretamente ou indiretamente, que são escravizadas pelos instrumentos de suas atividades, como resultado da divisão de trabalho: os burgueses mesquinhos, por seu capital e desejo por lucro; o advogado pelas idéias jurídicas ossificadas que o governam como uma força independente; ‘as classes educadas’ em geral, por suas limitações locais particulares e unilaterais, suas deficiências físicas e miopia espiritual. Estão todos mutilados pela educação que os treina para uma certa especialidade, pela escravização vitalícia a esta especialidade, até mesmo se esta especialidade é fazer absolutamente nada." [4]Isto é o que Engels escreveu em ‘O Anti-Dühring’. Nós temos que proceder da suposição básica que produção intelectual é determinada pela forma de produção material.
"Assim, por exemplo, no capitalismo é encontrada uma forma diferente de produção espiritual daquela prevalecente durante a Idade Média. Cada forma historicamente definida de produção material tem sua forma correspondente de produção espiritual, e isto, por sua vez, significa que a psicologia humana, que é o instrumento direto desta produção intelectual, assume uma forma específica a cada fase determinada do desenvolvimento". Esta incapacitação dos seres humanos, este desenvolvimento unilateral e distorcido das suas várias capacidades, que Engels descreve, e que surge com a divisão entre cidade e campo, está crescendo a uma enorme velocidade devido à influência da divisão tecnológica de trabalho.
Engels escreve:
"Todo conhecimento, perspicácia e vontade que o camponês e o artesão independentes desenvolvem, embora em uma escala pequena, como o selvagem que age como se toda a arte da guerra consistisse no exercício de sua astúcia pessoal, estas faculdades agora são requeridas apenas da fábrica como um todo. As potências intelectuais de produção as fazem desenvolver em um só sentido, porque as fazem extinguir em muitos outros. O que foi perdido pelos trabalhadores especializados [‘teilarbeiter’] está concentrado no capital que os emprega. Como resultado da divisão de trabalho no seio da manufatura, o trabalhador é levado a encarar as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia, e como um poder que o domina. Este processo de separação começa em co-operação simples na qual o capitalista representa para o trabalhador particular a unidade e a vontade do trabalho social [‘Arbeitskörpers‘].Isto que começa na manufatura, que mutila o trabalhador transformando-o em um trabalhador especializado, é terminado pela indústria de larga escala que separa a ciência, como um potencial produtivo, do trabalho e a coloca a serviço do capital." [5]
"Todo conhecimento, perspicácia e vontade que o camponês e o artesão independentes desenvolvem, embora em uma escala pequena, como o selvagem que age como se toda a arte da guerra consistisse no exercício de sua astúcia pessoal, estas faculdades agora são requeridas apenas da fábrica como um todo. As potências intelectuais de produção as fazem desenvolver em um só sentido, porque as fazem extinguir em muitos outros. O que foi perdido pelos trabalhadores especializados [‘teilarbeiter’] está concentrado no capital que os emprega. Como resultado da divisão de trabalho no seio da manufatura, o trabalhador é levado a encarar as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia, e como um poder que o domina. Este processo de separação começa em co-operação simples na qual o capitalista representa para o trabalhador particular a unidade e a vontade do trabalho social [‘Arbeitskörpers‘].Isto que começa na manufatura, que mutila o trabalhador transformando-o em um trabalhador especializado, é terminado pela indústria de larga escala que separa a ciência, como um potencial produtivo, do trabalho e a coloca a serviço do capital." [5]
Como resultado do avanço do capitalismo, o desenvolvimento da produção material trouxe simultaneamente consigo a divisão progressiva do trabalho e o crescente desenvolvimento distorcido do potencial humano. Se ‘na manufatura e no trabalho artesanal o trabalhador faz uso de suas ferramentas, então na fábrica ele se torna o criado da máquina’. Marx diz que no primeiro caso ele inicia o movimento da ferramenta, mas no segundo ele é forçado a seguir seu movimento. Os trabalhadores se transformam em ‘extensões vivas das máquinas’, o que resulta na ‘tenebrosa monotonia do infinito tormento do trabalho’ que Marx [1890/1962, pág. 445] diz ser o elemento característico daquele período no desenvolvimento do capitalismo que ele está descrevendo. O trabalhador é preso a uma função específica, e de acordo com Marx [ibid, pág. 381], isto o transforma ‘de um trabalhador em uma anormalidade que artificialmente ['treibhausmäsig '] é nutrida por apenas uma habilidade especial, suprimindo toda a riqueza restante de seus talentos e inclinações produtivas’. Nos dias atuais, o trabalho da criança representa um exemplo particularmente horrorizante da deformação do desenvolvimento psicológico humano. Na busca por trabalho barato e devido à simplificação extrema das funções que os trabalhadores têm que levar a cabo, o recrutamento em larga escala de crianças tornou-se possível, o que resulta em um desenvolvimento retardado, ou um completamente unilateral e distorcido que acontece na idade mais impressionante, quando a personalidade da pessoa está sendo formada.
A pesquisa clássica de Marx está cheia de exemplos de ‘esterilidade intelectual’, ‘degradação física e intelectual’, transformação ‘de seres humanos imaturos em máquinas para a produção de mais-valia’ [ibid., pp. 421-2], e ele apresenta um quadro vívido de todo o processo que resulta em uma situação na qual ‘o trabalhador existe em função do processo de produção, e não o processo de produção em função do trabalhador’[ibid., pág. 514].
Porém, todos estes fatores negativos não dão um quadro completo de como o processo de desenvolvimento humano é influenciado pelo crescimento acelerado da indústria. Todas estas influências adversas não são inerentes à indústria de larga escala como tal, mas à sua organização capitalista que está baseada na exploração de enormes massas da população e que resultou em uma situação na qual em vez de todo passo novo para a conquista da natureza pelos seres humanos, todo novo patamar de desenvolvimento da força produtiva da sociedade, não só não elevou a humanidade como um todo, e cada personalidade humana individual, para um nível mais alto, mas conduziu a uma degradação mais profunda da personalidade humana e de seu potencial de crescimento.
Enquanto observadores dos efeitos incapacitantes do processo de progresso da civilização sobre os seres humanos, filósofos como Rousseau e Tolstói não puderam ver nenhuma outra solução que um retorno à integralidade e pureza da natureza humana. De acordo com Tolstói, nosso ideal não está à nossa frente, mas atrás de nós. Neste sentido, do ponto de vista deste romantismo reacionário, os períodos primitivos de desenvolvimento da sociedade humana apresentam-se como aquele ideal que a humanidade deveria estar perseguindo. Realmente, uma análise mais profunda das tendências econômicas e históricas que regulam o desenvolvimento do capitalismo mostra que este processo de mutilação da natureza humana, acima discutida, é inerente não só ao crescimento da indústria de grande escala, mas à específica forma de organização da sociedade capitalista.
A mais fundamental e importante contradição em toda esta estrutura social consiste no fato que dentro dela, sob pressão inexorável, estão evoluindo forças para sua destruição, e estão sendo criadas as precondições para sua substituição por uma nova ordem baseada na ausência da exploração do homem pelo homem. Mais de uma vez, Marx demonstra como o trabalho, ou a indústria de larga escala, em si mesmos, não levam necessariamente à mutilação da natureza humana, como um seguidor de Rousseau ou Tolstói assumiria, mas, pelo contrário, contêm dentro de si mesmos possibilidades infinitas para o desenvolvimento da personalidade humana. Ele diz, ‘como pode ser averiguado a partir dos exemplos dados por Robert Owen, tem crescido a semente de um sistema educacional futuro que combinará o trabalho produtivo com a educação formal e física para todas as crianças acima de uma certa idade, não só como um método de aumento da produção, mas como o único método de produzir seres humanos bem equilibradamente educados’ [ibid., pp. 507-8]. Assim a participação das crianças nas fábricas, que sob o sistema capitalista, particularmente durante o período descrito de crescimento do capitalismo, é a fonte da degradação física e intelectual, contém em si mesma as sementes para um sistema educacional futuro e pode vir a constituir-se na forma mais elevada de criação de um tipo novo de ser humano.
O crescimento da indústria de grande escala faz necessário, por si só, que se construa um novo tipo de trabalho humano e um novo tipo de ser humano que seja capaz de levar a cabo estas novas formas de trabalho. ‘A natureza da indústria de larga escala estipula um trabalho mutável; uma mudança ininterrupta de funções e uma completa mobilidade para o trabalhador’, diz Marx: ‘o indivíduo que foi se transformado em uma fração, o portador simples de uma função social fracionária, será substituído por um indivíduo completamente desenvolvido para quem as funções sociais diversas representam formas alternativas de suas atividades ' [ibid., pp. 511-12].
Assim não só se demonstra que a combinação do trabalho industrial com a educação provou ser uns meios de criar pessoas plenamente desenvolvidas, mas também que o tipo de pessoa que será exigida para trabalhar neste processo industrial altamente desenvolvido, diferirá substancialmente do tipo de pessoa era o produto do trabalho voltado para a produção durante o período inicial do desenvolvimento capitalista. Neste aspecto o fim do período capitalista apresenta uma antítese notável relativa a seu começo.
Se no princípio o indivíduo foi transformado em uma fração, no executor de uma função fracionária, em uma extensão viva da máquina, então ao término, as próprias exigências da indústria requererão uma pessoa plenamente desenvolvida, flexível e que seja capaz de alterar as formas de trabalho, de organizar o processo de produção e de controlá-lo.Não importa qual característica particular e definidora do tipo psicológico humano que tomemos, seja nos períodos iniciais ou recentes do desenvolvimento do capitalismo, em todos os casos nós encontraremos sempre um significado e um caráter duplos em cada característica crucial.
A fonte da degradação da personalidade na forma capitalista de produção, também contém em si mesma o potencial para um crescimento infinito da personalidade.Para dar um exemplo, concluiremos examinando situações de trabalho onde pessoas de ambos os sexos e de todas as idades têm que trabalhar juntas. ‘A composição do quadro geral de empregados por pessoas de ambos sexos e todas as idades...’, diz Marx, ‘deve, pelo contrário, sob circunstâncias apropriadas, se transformar em uma fonte de desenvolvimento humano’ [ibid., pág. 514].
Disto pode se tirar que o crescimento da indústria de grande escala contém dentro de si mesmo o potencial escondido para o desenvolvimento da personalidade humana e que somente a forma capitalista de organização do processo industrial é a responsável pelo fato de todas estas forças exercerem uma influência unilateral e incapacitante que retarda o desenvolvimento pessoal.Em um de seus primeiros trabalhos, Marx escreve que se a psicologia desejar se tornar uma ciência realmente relevante, terá que aprender ler o livro da história da indústria material que encarna ‘os poderes essenciais de homem', e que é uma encarnação concreta da psicologia humana[6].
Da maneira como se dá, toda a tragédia interior do capitalismo consiste no fato que na ocasião em que o estudo objetivo da psicologia do homem, que continha dentro de si potencial infinito de domínio sobre a natureza e sobre o desenvolvimento de sua própria natureza, crescia a passo acelerado, sua vida espiritual real estava degradando e passando pelo processo que Engels descreveu tão vividamente como a mutilação do homem.Mas a essência de toda esta discussão consiste no fato que esta dupla influência de fatores inerentes à indústria de grande escala sobre o desenvolvimento pessoal do homem, esta contradição interna do sistema capitalista, não pode ser solucionada sem a destruição do sistema capitalista de organização industrial. Neste sentido, a contradição parcial que nós já mencionamos, entre o poder crescente do homem e sua degradação que paralelamente aprofunda-se, entre seu crescente domínio sobre a natureza, e sua liberdade por um lado, e a sua escravidão e dependência crescentes das coisas produzidas por ele mesmo, no outro — nós desejamos reiterar que esta contradição representa só uma parte de uma contradição muito mais geral e totalizadora que subjaz ao sistema capitalista tomado como um todo.
Esta contradição geral entre o desenvolvimento das forças de produção e a ordem social que correspondente a este nível de desenvolvimento das forças de produção, é resolvida pela revolução socialista e uma transição para uma nova ordem social e uma nova forma de organização das relações sociais. Paralelamente a esse processo, uma mudança na personalidade humana e uma alteração do próprio homem deve inevitavelmente acontecer.
Esta alteração tem três raízes básicas:
A primeira delas consiste no fato mesmo da destruição das formas capitalistas de organização e produção e das formas de vida social e espiritual que a partir daí irão surgir. Junto com o esfacelamento da ordem capitalista, todas as forças que oprimem o homem e que o mantêm escravizado pelas máquinas e que interferem com o seu livre desenvolvimento também desaparecerão e serão destruídas. Junto com a liberação dos muitos milhões de seres humanos da opressão, virá a libertação da personalidade humana das correntes que restringem seu desenvolvimento. Esta é a primeira fonte — a liberação do homem.
A segunda fonte de qual emerge a alteração de homem reside no fato de que ao mesmo tempo em que as velhas correntes desaparecem, o enorme potencial positivo presente na indústria de grande escala, o já crescente poder dos homens sobre a natureza, será liberado e tornado operativo. Todas as características discutidas acima, das quais o exemplo mais notório é a forma completamente nova de criar um futuro baseado na combinação de trabalho físico e intelectual, perderão seu caráter dual e mudarão o curso de sua influência de um modo fundamental. Considerando que anteriormente suas ações foram dirigidas contra as pessoas, agora elas começam a trabalhar por causa delas. De seu papel de obstáculos desempenhado outrora, elas se transformam em forças poderosas de promoção do desenvolvimento da personalidade humana.
Finalmente, a terceira fonte que inicia a alteração de homem é mudança nas próprias relações sociais entre as pessoas. Se as relações entre pessoas sofrem uma mudança, então junto com elas as idéias, padrões de comportamento, exigências e gostos também mudarão. Como foi averiguado por pesquisa psicológica a personalidade humana é formada basicamente pela influência das relações sociais, i.e., o sistema do qual o indivíduo é apenas uma parte desde a infância mais tenra. ‘Minha relação para com meu ambiente’, diz Marx, ‘é minha consciência’[7]7. Uma mudança fundamental do sistema global destas relações, das quais o homem é uma parte, também conduzirá inevitavelmente a uma mudança de consciência, uma mudança completa no comportamento do homem.
A educação deve desempenhar o papel central na transformação do homem, nesta estrada de formação social consciente de gerações novas, a educação deve ser a base para alteração do tipo humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de educação representam a rota principal que a história seguirá para criar o novo tipo de homem. Neste sentido, o papel da educação social e politécnica é extraordinariamente importante. As idéias básicas que justificam a educação politécnica consistem em uma tentativa de superar a divisão entre trabalho físico e intelectual e reunir pensamento e trabalho que foram separados durante o processo de desenvolvimento capitalista. De acordo com Marx, a educação politécnica proporciona a familiaridade com os princípios científicos gerais a todos os processos de produção e, ao mesmo tempo, ensina as crianças e adolescentes que habilidades práticas tornam possível para eles operarem as ferramentas básicas utilizadas em todas as indústrias. Krupskaja formula esta idéia da seguinte maneira:
"Uma escola politécnica pode ser distinguida de uma escola de comércio pelo fato de centrar-se na interpretação de processos de trabalho, no desenvolvimento da habilidade para unificar teoria e prática e na habilidade para entender a interdependência de certos fenômenos, enquanto em uma escola de comércio o centro de gravidade está em proporcionar para os alunos habilidades para o trabalho".[8]
"Uma escola politécnica pode ser distinguida de uma escola de comércio pelo fato de centrar-se na interpretação de processos de trabalho, no desenvolvimento da habilidade para unificar teoria e prática e na habilidade para entender a interdependência de certos fenômenos, enquanto em uma escola de comércio o centro de gravidade está em proporcionar para os alunos habilidades para o trabalho".[8]
Coletivismo, a unificação do trabalho físico e intelectual, uma mudança nas relações entre os sexos, a abolição da separação entre desenvolvimento físico e intelectual, estes são os aspectos fundamentais daquela alteração do homem que é o assunto de nossa discussão. E o resultado a ser alcançado, a glória e coroamento de todo esse processo de transformação da natureza humana, deveria ser o aparecimento da forma mais alta de liberdade humana que Marx descreve da seguinte maneira: ‘Somente em comunidade,[com os outros, cada] indivíduo [possui] os meios de cultivar seus talentos em todas as direções: só em comunidade, então, é possível a liberdade pessoal’[9]. Assim como a sociedade humana, a personalidade individual precisa dar este salto que a leva do reino da necessidade à esfera de liberdade, como foi descrito por Engels. Sempre que a alteração do homem e a criação de um novo nível mais elevado de personalidade e conduta humanas são postas em discussão, é inevitável que sejam mencionadas idéias sobre um tipo novo de ser humano relacionado à teoria de Nietzsche sobre o super-homem.
Partindo das perfeitamente verdadeiras suposições que a evolução não parou no homem e que o tipo moderno de ser humano representa nada além de uma ponte, uma forma transitória, que conduz a um tipo mais elevado, que a evolução não esgotou suas possibilidades quando criou o homem e que o tipo moderno de personalidade não é a realização mais alta e a última palavra no processo de desenvolvimento, Nietzsche concluiu que uma criatura nova pode surgir durante o processo de evolução, um super-homem que guardará a mesma relação com homem contemporâneo que o homem contemporâneo guarda com o macaco.
Porém, Nietzsche imaginou que o desenvolvimento deste tipo mais elevado de homem estava sujeito à mesma lei de evolução biológica, a luta pela vida e a seleção baseada na sobrevivência do mais apto, que prevalece no mundo animal. É por isto que o ideal de poder, a auto-afirmação da personalidade humana em toda sua abundância de poder e ambição instintivos, o individualismo áspero de homens e mulheres fora de série, de acordo com Nietzsche, formariam, a estrada para a criação de um super-homem.
Esta teoria é errônea, porque ignora o fato que as leis de evolução histórica do homem diferem fundamentalmente das leis da evolução biológica e que a diferença básica entre estes dois processos consiste no fato que um ser humano evolui e se desenvolve como um ser histórico, social.
Só uma elevação de toda a humanidade a um nível mais alto de vida social, a liberação de toda a humanidade, pode conduzir à formação de um novo tipo de homem. Porém, esta mudança do comportamento humano, esta mudança da personalidade humana, tem que conduzir, inevitavelmente, à evolução do homem para um tipo superior, para a alteração do tipo biológico humano.
Tendo dominado os processos que determinam sua própria natureza, o homem que hoje está lutando contra velhice e doenças, ascenderá, indubitavelmente, a um nível mais elevado e transformará sua própria organização biológica. Mas esta é a fonte do maior paradoxo histórico do desenvolvimento contido nesta transformação biológica do tipo humano, que ela é alcançada principalmente por meio da ciência, da educação social e da racionalização dos modos de vida.
A alteração biológica do homem não representa uma condição prévia para estes fatores, mas, ao invés disso, é um resultado da liberação social do homem. Neste sentido Engels, que tinha examinado o processo de evolução do macaco ao homem, disse que trabalho que criou o homem[10]. Partindo daí, poder-se-ia dizer que novas formas de trabalho criarão o novo homem e que este homem novo se assemelhará ao tipo antigo de homem, ‘o antigo Adão’, apenas no nome, da mesma maneira como, de acordo com a grande declaração de Spinoza, um cão, o animal que late, se assemelha a Cão constelação celeste[11].1930
Notas:
* Nota da tradução para língua portuguesa: cabem algumas observações acerca desta tradução:
a) Esta tradução é feita a partir da versão em língua inglesa do texto, portanto está mais sujeita a incorreções que o próprio texto que lhe serviu de base, dado que este já era por si só uma tradução.
b) O tradutor é brasileiro, e nessa qualidade efetuou toda a tradução tendo em vista as normas da língua portuguesa vigentes no Brasil, ainda assim, por não ser profissional do ramo das Letras, o tradutor pede desculpas por qualquer eventual erro.
c) Relativamente ao trabalho que serviu de modelo a esta tradução foi suprimida uma das notas, a nota número 5, por isso, a partir desta número as notas desta tradução não correspondem àquelas da numeração do texto original. O motivo da omissão foi não haver no corpo do texto indicação da nota, apenas constando a mesma do "rodapé".
d) Ao contrário do tradutor para língua inglesa do texto original, o tradutor deste texto não buscou as traduções para a língua portuguesa dos textos originais citados. Nas notas que seguem (que também são traduções do texto base da tradução) são feitas referências às obras em língua inglesa, alemã ou russa dependendo do caso. É importante lembrar que as traduções dos textos originais aqui citados também são traduções livres do tradutor do presente texto.
1. Provavelmente se refere a Plekhanov, G. V. 1922: Ocherki po istorii materializma. Moscou.
2. Refere-se à pág. 272 de Engels, F. 1894/1978: Herrn Eugen Duhring’s Umwalzung der Wissenschaft [Anti-Duhring]. Dietz Verlag.
3. É obscuro a que livro que Vygotsky está se referindo.
4. Referência às pp. 271-2 de Engels 1894/1978. Ver também pp. 381 e 445 de Marx, K. 1890/1962: Das Kapital [O Capital] 4th ed.). Berlin: Dietz Verlag.
5. Um erro curioso. O texto atribuído a Engels pode ser achado na p. 382 de Marx, K. 1890/1962: Das Kapital [O Capital] (4th edn). Berlin: Dietz Verlag.
6. ‘Entendemos que a história da indústria e a atual existência objetiva da indústria são o livro aberto dos poderes essenciais do homem, percebemos a psicologia humana existente... uma psicologia para qual este livro, a parte de história que existe na forma mais perceptível e acessível, permanece um livro fechado, não pode se tornar uma ciência genuína, geral e real’. Ver pp. 302-03 of Marx-Engels Collected Works. Vol, 3: Economic and Philosophical Manuscripts. New York: International Publishers (1975).
7. Referência à p. 30 of Marx, K. e Engels, F. 1846/1978: Die deutsche Ideologie [A Ideologia Alemã].Berlin: Dietz Verlag.
8. A esposa de Lênin, N. K. Krupskaja, devotou muita atenção à questões educacionais. Em seu livro, Vospitanie molodezhi v Leninskom dukhe [Educação da Mocidade no Espírito de Lenin] ela discutiu experiências internacionais suas contemporâneas com escolas de trabalho (Arbeitsschule) à luz do ideal de Marx da educação politécnica. Ver Krupskaja, N. K. 1925/1989: Vospitanie molodezhi v Leninskom dukhe. Moscow: Pedagogika. Nós não pudemos estabelecer a fonte exata da presente citação.
9. Ver p. 74 de Marx e Engels (1846/1978).
10. Conferir pp. 444-55 de Engels, F. 1925/1978: Dialektik der Natur [A Dialética da Natureza]. Berlin: Dietz Verlag
11. Uma das citações favoritas de Vygotsky da Ética de Spinoza. Ver p. 61 of Spinoza, B. de 1677/1955: On the improvement of the understanding. The ethics. Correspondence. New York: Dover. ‘O antigo Adão’ pode ser uma referência implícita ao uso por Marx (1890/1962, p. 118) desta expressão.
Tradução de Nilson DóriaLev Vygotsky (1896 - 1934) foi o psicólogo soviético que desenvolveu a abordagem genética ao desenvolvimento de conceitos na infância e na juventude, apontando a transição de uma série de estados do desenvolvimento humano com base na prática social da criança.
Os seus trabalhos, publicados após a sua morte em 1934 e suprimidos em 1936, só foram conhecidos no ocidente em 1958.
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