quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Heterofobia e moscas albinas: Sites brasileiros distorcem estudo produzido nos Estados Unidos


Por João Marinho


O que vem a ser homofobia? Atualmente muito popular, a palavra parece ser autoexplicativa para a maioria dos mortais, mas há grupos e "especialistas" que procuram problematizar a questão – quase sempre, em nossa opinião, no intuito de jogar uma cortina de fumaça sobre o preconceito e a discriminação sofridos cotidianamente por gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs).


Em 2007, assisti a uma audiência pública no Senado a respeito do PLC 122/2006 – o projeto de lei que busca criminalizar, no Brasil, precisamente essa prática discriminatória. Lembro-me de que um dos convidados foi o Reverendo Guilhermino Cunha, da Academia Evangélica de Letras do Brasil (AELB), que, durante sua argumentação, tentou desqualificar a palavra homofobia.


Recorrendo aos elementos formadores da palavra – o prefixo homo-, de "igual" ou "semelhante"; e o sufixo -fobia, de "medo" –, Cunha procurou sustentar a impossibilidade de utilizar o termo para descrever o preconceito e a discriminação sofridos por LGBTs. Segundo ele, uma pessoa homofóbica seria alguém que tivesse medo do igual, ou seja, do mesmo sexo. Uma definição em que a maioria dos heterossexuais, e dos evangélicos que se opõem ao PLC, jamais poderia ser encaixada.


Parecia uma explicação plausível, mas aprendi, ao estudar autores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu, que o questionamento sobre o que diz um saber especializado normalmente é um dos primeiros e mais necessários passos ao propormos uma sociedade mais libertária e aberta às diferenças. A ciência e os discursos do saber não são, afinal, integralmente neutros – e, aqui e ali, é preciso depurá-los de valores culturais e julgamentos morais que advêm de ideologias a priori e preconceitos históricos prévios.


Não sou linguista, mas, para qualquer pessoa que estude minimamente a língua portuguesa, resulta claro que o processo de formação de palavras pode ser mais livre e espontâneo do que certos etimólogos gostariam, e, nesse processo, nem sempre um prefixo de origem grega ou latina corresponde ao seu significado original na formação de uma palavra. Por vezes, o prefixo assume o sentido global de uma palavra da qual antes era componente, resultando no que se denomina falso prefixo.


Auto- é um dos melhores exemplos. O significado original grego é o de "por si mesmo" ou "próprio", como na palavra automóvel: algo que se move por si mesmo. No entanto, auto- é, por vezes, um falso prefixo, ao assumir, em outras palavras, precisamente o significado de automóvel, carro, e não o de "por si mesmo".


Com efeito, em palavras como autoescola e autovia, qualquer um entende que falamos de uma escola para aprender a dirigir um carro e de uma via em que os carros passam – e não de uma escola ou de um caminho que, magicamente, se movem sozinhos. Aeroporto é outro exemplo, com o falso prefixo aero-: obviamente, falamos de um lugar onde aeronaves pousam, e não de um porto que flutua no ar, que seria o caso se aero- mantivesse seu significado original.


Ora, homo-, de homofobia, deriva de homossexual. É um caso de falso prefixo, em que homo- não é "igual" ou "semelhante": homo- é gay! E fobia? Bom, embora na psicologia e na psiquiatria, fobia seja quase sempre um medo patológico de alguma coisa, ela também se revestiu de um sentido conotativo ou derivado no uso cotidiano do português, significando aversão ou falta de tolerância. Portanto, como já registram dicionários como o Houaiss, homofobia simplesmente é a "rejeição ou aversão a homossexual e a homossexualidade".


Prova desse uso corrente de -fobia, eu tive em 2010, quando encomendei óculos novos com lentes hidrofóbicas. É óbvio que a vendedora falava de uma tecnologia que permitia às lentes serem à prova d'água e não se mancharem com gotículas – e não de lentes que, ao observarem a chuva chegando, fugissem dela, assustadas e traumatizadas.


Obviamente, conforme a palavra homofobia se populariza, o apelo de argumentos como o do Reverendo Cunha torna-se mais fraco. Gostem ou não, todos hoje têm uma consciência, mesmo parcial, do que é homofobia e do que é ser homófobo, homofóbico.


Foi, então, que os que se opõem aos direitos dos LGBTs lançaram outra ideia: a de heterofobia. Assumindo o uso do falso prefixo e o sentido conotativo ou derivado de fobia, passaram a dizer que gays e afins são heterofóbicos, ou seja, têm aversão a heterossexuais.


Posso admitir que existam pessoas que sejam, por exemplo, machistas – e considerem os homens superiores às mulheres de alguma forma. Pessoas que sejam misóginas – tenham aversão a mulheres; que sejam misândricas – tenham aversão a homens; ou mesmo misantropas, que tenham aversão ao gênero humano.


No entanto, a existência de pessoas que tenham aversão a heterossexuais ou à heterossexualidade especificamente, embora seja teoricamente possível, é bem mais difícil de sustentar. Quando alguém tem aversão a mulheres, por exemplo, normalmente é uma aversão que se dirige a todas, e as lésbicas costumam até mesmo sofrer essa aversão em dose dupla.


Fica até difícil pensar de que maneira a heterofobia se manifestaria. Se gays podem ser xingados de "veados", "bichas", "baitolas"... Como se xingaria alguém por ser hétero? E quantos héteros, no Brasil, são agredidos e mortos por esta razão: o fato único e exclusivo de gostarem do sexo oposto?


No entanto, a oposição aos LGBTs diz ter seus dados. Na internet em língua portuguesa, é repetida à exaustão a existência de um determinado estudo conduzido por Stephen M. White e Louis R. Franzini que indicaria "que há mais sentimentos negativos e heterofobia por parte das pessoas homossexuais, quando comparados com os sentimentos negativos e homofobia por parte das pessoas heterossexuais". Dúvida? Consultem este link: http://tinyurl.com/82mu4q4. A descrição encontra espaço até na Wikipédia, que muitos estudantes utilizam como fonte de pesquisa.


Sabendo que há muitos boatos e informações incorretas na internet, incluindo a Wikipédia – por sinal, chama a atenção que nenhum site indique qual seria esse estudo, onde e quando foi publicado –, procurei saber mais sobre a pesquisa dos Drs. White e Franzini.


Os autores existem, e, após navegar por mares nunca dantes navegados, deparei-me com a existência do estudo Heteronegativism? The attitudes of gay men and lesbians toward heterosexuals, publicado no Journal of Homosexuality, em 1999.


Infelizmente, quase todos os sites que disponibilizavam o estudo cobravam pelo download, e não foi possível obtê-lo na íntegra... Mas, como geralmente ocorre numa pesquisa bem-feita mesmo na internet, acabei por encontrar o contato do Dr. Stephen M. White no The Rainbow Connection, um site dedicado a ajudar pais de crianças homossexuais mantido pelo próprio psicólogo – e que possui o mesmo nome de um livro escrito por ele, sobre o mesmo assunto.


Tomei a liberdade de escrever-lhe pedindo que esclarecesse suas descobertas, informando que o material seria utilizado neste artigo, que vocês ora leem. A reação do Dr. White foi de surpresa. Com todas as palavras, ele me informou que os sites brasileiros – e portugueses – que indicam maior preconceito de gays e lésbicas em relação aos heterossexuais do que o inverso simplesmente dizem o contrário do que o estudo havia descoberto!


White e Franzini, na verdade, descobriram que, apesar de sofrerem muito mais discriminação devido a sua orientação sexual, gays e lésbicas mantinham, em geral, uma atitude extremamente positiva para com os heterossexuais, muito mais do que os heterossexuais dedicam a eles. Meu contato com o Dr. White resultou em uma nota de esclarecimento, assinada por ele, em inglês, e agora disponível no The Rainbow Connection: http://the-rainbow-connection.org/ResearchClarification.html.


Resumo da ópera e lição de jornalismo: não acreditem em tudo que leem; busquem sempre fontes e informações confiáveis e comparem dados; não reproduzam aquilo sobre o que paira dúvida ou não se sabe a origem; e se deem o benefício de questionar e perguntar sempre – e aproveitem agora para, orgulhosos, mandar a cada site que fez um uso incorreto das descobertas dos Drs. White e Franzini a informação fidedigna e desmascarar mais essa mentira que paira sobre os LGBTs.


Para mim, particularmente, o que me resta é dizer que até acredito que exista heterofobia. Também acredito em moscas albinas de olhos azuis – mas, até o momento, não vi nenhuma das duas coisas...
Fonte: João Marinho - via e-mail

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