Não sei se você sabe. Mas existem dois Brasis. Parafraseando um autor cujo nome não lembro, posso dizer que nos dividimos em dois grupos. Aqueles que têm mais jantares do que apetite e os que têm mais apetite do que jantares. Pode até parecer uma definição simplista demais. No entanto, isso não faz dela uma mentira. É claro que existe um evidente confronto de classes nisso tudo. Tratemos desses dois Brasis de maneira metafórica. Até mesmo porque – “nunca na história deste país” – uma metáfora foi tão real.
Existe um Brasil chamado “doutor” Luiz Cavalcante Alves Calheiros Gomes de Moraes Sobrinho, que por motivos didáticos chamarei de doutor Luiz. Homem branco, dono de vários latifúndios, empresas, bancos e usinas, morador de um condomínio fechado e de alto luxo, o doutor Luiz também possui fazendas, chácaras, casas de praia e coberturas espalhadas pelo mundo todo. Sua fortuna pessoal está avaliada em torno de 70 bilhões de dólares. Sem falar, claro, nas contas secretas em paraísos fiscais. Além de tudo isso, o doutor Luiz também é um político de sucesso. Um parlamentar que constantemente aprova no Congresso Nacional leis que flexibilizam os direitos trabalhistas e favorecem os lucros de suas empresas. E eu nem preciso mencionar os casos de desvio de dinheiro público em que o doutor Luiz está metido.
Em contrapartida, existe outro Brasil chamado José da Silva. Mais conhecido na periferia como “Zé da construção”. Co-habitante de um barraco no morro do Sururu (pois divide um único cômodo com a mulher, os filhos, os ratos e as baratas!), Zé da construção é negro, pobre, miserável e não possui nenhuma propriedade em seu nome. Trabalha como ajudante de pedreiro numa construção em um bairro nobre da cidade. Mas nas horas vagas também faz uns bicos como encanador, eletricista e marceneiro. O único lazer do Zé da construção é a cachacinha que toma com os amigos jogando sinuca nos finais de semana. Mas o Zé da construção não é nenhum bobo, não! Conhece alguns de seus direitos e em determinados momentos até já chegou a se mobilizar em greves.
O fato, senhoras e senhores, é que esses dois Brasis um dia tiveram seu encontro com a justiça. O doutor Luiz descuidou-se um pouco da segurança dos seus “esquemas”. Tsc, tsc. Aí já viu, né? Alguém deu com a língua nos dentes, veio o grampo do telefone, a câmera escondida. Doutor Luiz acabou virando manchete de jornal. As acusações que pesavam sobre sua cabeça eram as mais diversas. Desvio de verba pública, sonegação de impostos, estelionato, caixa-dois, tráfico de influências, compra de voto, trabalho escravo, formação de quadrilha, envolvimento com o narcotráfico, quebra de decoro, cárcere privado e até assassinato de fiscais tributários. Mas o doutor Luiz era branco, rico, parlamentar, tinha curso superior, muitas posses etc, etc, etc. Enfim, não foi preso. Não sentiu o peso das algemas. Nem entrou no camburão. Foram abertos vários processos. E todos, posteriormente, acabaram arquivados. Motivo: insuficiência de provas. O doutor Luiz teve apenas que renunciar ao seu mandato. Mas isso ele mesmo disse que não era problema. Iria se candidatar de novo no ano que vem. E voltaria à política “nos braços do povo”.
Com o Zé da construção foi um pouco, digamos, “diferente”. O Zé tava com o salário lá da construção atrasado fazia tempo. Em casa já não tinha mais nada pra comer. A mulher e os meninos viviam chorando de fome e de doença. O Zé tava aperreado. Não sabia nem o que fazer. Um dia, chegando no trabalho, descobriu que não ia mais ter trabalho. A empresa tinha dispensado todo mundo e não ia pagar nada. “Faliu!” – disseram pro Zé. E o dono? “Sumiu!” – completaram. O Zé desesperou-se. Saiu de lá se sentindo um ninguém. E se sentir um ninguém é uma merda. Entrou no primeiro bar que viu e bebeu todo o dinheiro que tinha. Uns míseros trocados. Chorou, chorou muito. Mas tinha de ir pra casa. Como? Com as mãos abanando? Sem levar nada pros meninos? Não podia. Saiu do bar disposto a fazer uma coisa que nunca tinha feito.
“A dona daquela casa cria umas galinhas” – disse o Zé pra si mesmo. Pulou o muro que dava pro quintal e deu de cara com as “bichinhas”. Abriu a portinhola do galinheiro e catou pela asa uma ave bem gordinha. Na saída, acabou derrubando umas gaiolas, cuias, canecos. Fez muito barulho. As luzes se acenderam e o Zé ouviu uns gritos. “É ladrão! É ladrão!”. Soltaram os cachorros. O Zé pulou de volta o muro numa pernada só. Com a galinha na mão, se pôs a correr em disparada. Na esquina, o vigia da rua já soprava com toda força o apito que tinha na boca. “Pega ladrão! Paga ladrão!” – gritava o vigia.
A polícia chegou rápido. E mais rápido ainda chegou até a casa do Zé. Não é difícil seguir o rastro de um homem correndo com uma galinha embaixo do braço. Os policiais entraram derrubando a porta do barraco. O Zé não teve tempo nem de correr. Foi logo arrastado pra fora de casa. Juntou gente pra ver. Chorando, a mulher e as crianças pediam pra não levarem o Zé preso. Não teve jeito. “Bandido é bandido, dona. A Lei é igual para todos”. Bateram muito na cara do Zé da construção. Assim, além de sangue, ele também perdia a dignidade. Depois, a agressão dos policiais a um homem desarmado seria justificada com a já conhecida frase: “O acusado reagiu à prisão.”.
O Zé conheceu pela primeira vez o fundo do camburão e o peso das algemas. Sentiu tanta vergonha que até mesmo o choro ficou engasgado, sem querer sair. Na delegacia, foi jogado numa cela com outros 50 presos. Todos uns ninguéns. Assim como ele. Negros, pobres, miseráveis. Desgraçados.
O Zé foi levado para o presídio. Lá, aguardaria durante uns anos a data do julgamento. Depois esperaria mais uns tantos outros até cumprir a pena. Quando saísse, nunca mais arrumaria emprego e viveria infeliz o resto de seus dias.
Mas nada disso aconteceu. Não deu tempo. O Zé morreu antes. Teve rebelião no presídio. Armada até os dentes, a polícia entrou atirando em todo mundo. “Era preciso manter a ordem.” – disseram mais tarde. Uma das muitas balas encontrou o Zé. E ele finalmente teve seu encontro com a justiça. E viu que ela não era cega. Sabia exatamente em quem estava atirando.
O Brasil chamado Zé da construção provavelmente nunca leu Eduardo Galeano. Possivelmente uma parte dele nem sabe ler. Mas talvez não seja preciso. A conclusão é simples e dura.
Nós, os ninguéns, somos os filhos de ninguém, os donos de nada.
Nós, os ninguéns, custamos menos do que a bala que nos mata.
Fonte: http://ascronicasdojoao.blogspot.com/
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