segunda-feira, 26 de julho de 2010

O Científico e o Ideológico

Por ANTONIO INÁCIO ANDRIOLI
“Na verdade, em nosso recrutamento universitário e no nosso recrutamento em geral, influenciamos fortemente nosso pessoal para um tipo de pesquisa não-científica” (Dr. Donald G. Manly, Diretor da Air Products and Chemical Incorporated).
A suposição de existência de uma ciência neutra e livre de condicionamentos ideológicos, como referência para a tomada de decisões políticas, continua atual. Diante da polêmica criada pelo plantio ilegal da soja transgênica no Brasil, vem crescendo o número de adeptos de um apoio incondicional à transgenia como portadora natural do progresso para a agricultura, e do repúdio à assim chamada “ideologização” do debate por parte dos críticos desta tecnologia. A atitude é autoritária, pois não suporta a possibilidade do pensamento diferente ou contraditório sobre o tema. Sob o título de ciência, os defensores da nova tecnologia se apropriam de artifícios externos ao debate para se qualificarem como autoridades, numa tentativa de imposição de seus argumentos. Ora, se o pressuposto é o científico, por que não ouvir todas as posições? A resposta é que a posição dos críticos da soja transgênica seria ideológica e só prejudicaria o debate. Mas, é possível separar ciência de ideologia? E que critérios estão sendo usados para qualificar uma posição de científica e a outra de ideológica?
A polêmica parece nova, mas é tão antiga quanto a idéia moderna de ciência. Na tradição herdada do positivismo, a ciência é concebida como autônoma e isolada dos conflitos sociais. Sua hipótese básica é de que a sociedade humana funciona com base em leis naturais invariáveis, neutras e, portanto, independentes da ação humana. As classes sociais, as posições políticas, os valores morais e as visões de mundo dos sujeitos envolvidos são encarados como empecilhos à objetividade científica e o pesquisador deve se esforçar para eliminar estas influências do meio social na sua pesquisa. Mas, como o pesquisador pode evitá-las, se ele é um ser social imerso na realidade, se a delimitação do seu objeto de estudo, as perguntas que faz e as interpretações que desenvolve já são influenciadas por sua história de vida, seus valores e sua visão de mundo?
Na Alemanha há um conto infantil muito famoso do Barão de Münchhausen, que pode servir para ilustrar essa pretensão de neutralidade dos positivistas. Conta-se que, certo dia, o Barão de Münchhausen, num de seus passeios a cavalo, afundou num pântano. Ele ia afundando cada vez mais e, como não havia ninguém para socorrê-lo, ele teve a brilhante idéia de puxar a si mesmo pelos cabelos, até que conseguiu sair, juntamente com seu cavalo, do atoleiro. Essa é a pressuposição dos positivistas: o cientista, preso a uma redoma de preconceitos e ilusões, consegue isolar-se do mundo que o cerca, ficando acima de qualquer interesse ou ideologia. O dilema dessa concepção é o de que os preconceitos e a visão de mundo do cientista são simplesmente ignorados, como se não existissem. O cientista permanece iludido, acreditando que é neutro e reproduz valores que consciente ou inconscientemente estão presentes, mas não devem ser encarados. É por isso que os positivistas, mesmo quando são sinceros na sua tentativa de se isolar no objeto de pesquisa, não conseguem se libertar dos seus preconceitos conservadores e acabam servindo ideologicamente às classes dominantes na sociedade.
A ciência não está isolada do mundo e os fenômenos sociais não podem ser explicados por leis naturais. A especulação científica parte de sujeitos humanos, como tentativa de conhecimento da verdade, numa relação com a totalidade dos aspectos sociais e históricos. O conhecimento científico é sempre transitório e socialmente relativo. A ciência reflete apenas uma maneira de pensar e, por isso, não é autônoma e não está isolada da luta de classes. Mesmo que não haja uma relação lógica direta entre fato e valor, há uma relação sociológica entre ambos, pois o conhecimento de um fato conduz a posições morais e políticas e esses valores estarão presentes para o pesquisador, o tempo todo, durante o processo científico. Neste sentido, não existe ciência de um lado e ideologia de outro, mas diferentes pontos de vista científicos, vinculados a diferentes pontos de vista de classe. Como não há critério absoluto para medir a cientificidade do conhecimento, é através da publicidade crítica, no embate das idéias, que os resultados de uma pesquisa podem ser avaliados, tendo em vista sua correspondência com a realidade. Mas, mesmo que um conhecimento científico tenha sido aceito, ele deve permanecer em condições de ser refutado no momento em que outra leitura da realidade possa superá-lo. Ele não é, portanto, sinônimo da verdade ou um dogma, mas resultado provisório de uma investigação humana num determinado período histórico e social e, portanto, suscetível a todas as idéias e valores presentes na sociedade.
A ideologia, entendida como visão de mundo, sempre estará presente no processo científico e seria muito ingênuo aceitar a hipótese de neutralidade dos intelectuais. Mas, no decorrer da história, foram atribuídos vários significados ao conceito de ideologia e muitos autores o utilizam num sentido negativo. Para Karl Marx, por exemplo, ideologia é sinônimo de ilusão, consciência deformada da realidade construída pela classe dominante. Para Karl Mannheim, existem dois tipos de ideologia: uma de caráter justificador da ordem social (assim como para Marx) e, outra, subversiva, com função crítica, que ele preferiu chamar de utopia. Para Antonio Gramsci, a ciência sempre é ideológica, porque resulta do processo histórico de desenvolvimento das classes sociais. Toda pretensão de verdade tem uma origem histórica e sua validade é provisória, como parte organicamente integrada numa estrutura social. Neste sentido, não é possível ao intelectual escapar da ideologia, seu conhecimento sempre estará ideologicamente situado. Assim como o conhecimento científico é relativo e provisório, ele também está impregnado de valores, e o cientista, consciente desta realidade, deve mover-se dentro dela para buscar o conhecimento objetivo e verdadeiro.
A questão da soja transgênica é muito exemplar neste aspecto. A soja Roundup Ready foi desenvolvida pela empresa Monsanto, que investe enormes recursos em pesquisa e em propaganda, com a clara intenção de faturar com a venda de sementes (através do pagamento de royalties pela patente da tecnologia) e herbicidas. Assim, temos, por um lado, os pesquisadores pagos pela Monsanto, que atuam em seus centros de pesquisa, em centros de pesquisa públicos e em universidades com financiamento da empresa, interessada em difundir sua tecnologia e dominar o mercado. Essa é a grande questão que está em jogo na liberação da soja transgênica no Brasil, pois sua liberação no país pode forçar os consumidores do mundo inteiro a consumi-la, já que, neste caso, não haverá mais soja convencional suficiente disponível no mundo. Somam-se, ainda, os profissionais de uma parte da mídia, cujas empresas recebem recursos da Monsanto vinculados ao seu programa de marketing e propaganda. Do outro lado, existem os cientistas que desenvolvem pesquisas sobre o mesmo tema, mas sem receber recursos da Monsanto, os representantes de organizações ambientalistas e de defesa do consumidor. Dos dois lados, portanto, é produzido conhecimento, mas com interesses opostos. Enquanto um lado trabalha com imensos recursos e uma ampla estrutura de pesquisa disponibilizados pelo investimento da Monsanto, que condiciona todas suas pesquisas a seus interesses, o outro lado chega a resultados científicos que contradizem todos os estudos difundidos pela empresa interessada na venda de sementes e herbicidas. Qual dos dois resultados é mais científico e qual é mais ideológico?
Os agricultores são influenciados por ambos os lados e procuram adequar o conhecimento disponível aos seus interesses. A junção de conhecimento com interesse se transforma em ideologia e as diversas organizações da sociedade se posicionam de um lado ou de outro seguindo esta mesma lógica. O governo, que é composto por partidos políticos e procura ampliar sua base de aliados, os quais também se posicionam diferentemente com relação à polêmica, é desafiado a posicionar-se diante de uma situação criada: parte dos agricultores plantou a soja transgênica ilegalmente, utilizando sementes contrabandeadas da Argentina e descumprindo o acordo feito no ano anterior, em que a comercialização da safra foi excepcionalmente liberada com o compromisso, por parte dos agricultores, de não plantá-la novamente neste ano. Diante disso, o governo, pressionado pela mídia, por parlamentares e governadores, por integrantes do próprio governo, pela Monsanto, por pesquisadores que defendem a soja transgênica e por organizações dos agricultores que afrontaram a lei, editou uma medida provisória, liberando o plantio da soja contrabandeada.
Quais foram os critérios utilizados para esta decisão? O governo Lula anunciou que sua decisão estaria baseada em critérios científicos. Mas, quais foram os critérios científicos utilizados que permitem a liberação de um cultivo sem a prévia apresentação do Estudo de Impacto Ambiental previsto legalmente neste caso? Quais são os resultados “científicos" apresentados pela Monsanto que já não tenham sido cientificamente refutados pelos pesquisadores críticos à adoção desta tecnologia? Na verdade, ao ceder à pressão política, permitindo o plantio da soja transgênica, este governo ignorou o princípio da precaução e tomou sua decisão mais ideológica até o momento que é, por ironia, contrária ao seu programa e à classe social que o elegeu.
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/029/29andrioli01.htm

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