Por Leandro Konder
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
A principal contribuição de Marx às discussões contemporâneas em torno da teoria do conhecimento é, com certeza, sua teoria da ideologia.
O termo havia sido posto em circulação por Destutt de Tracy, que o empregava com sentido positivo; a ideologia era concebida como uma espécie de superciência, a ciência das idéias, que abrangia todas as outras. Quem conferiu sentido crítico à palavra foi Napoleão Bonaparte, irritado com os “ideólogos”, que a seu ver estavam querendo ensinar-lhe política e história. O socialista utópico Fourier encampou o significado restritivo, pejorativo, atribuído pelo imperador ao vocábulo e Marx desenvolveu toda uma teoria para explicar por que a ideologia era problemática.
Para Marx, a construção do conhecimento, por si mesma, apresenta grandes dificuldades, já que a aparência das coisas não coincide imediatamente com a essência delas e a apreensão do movimento do real exige o que Hegel chamava de “o esforço do conceito”. Porém Marx dava um passo além: abordava dificuldades adicionais, decorrentes da situação dos sujeitos do conhecimento. Como agem em condições que os dividem, que promovem a colisão de seus interesses vitais, esses sujeitos tropeçam em armadilhas criadas por eles e que eles mesmos não conseguem entender inteiramente.
Com a divisão social do trabalho, com a apropriação privada dos meios de produção, com a escravidão, a luta de classes, a exploração do trabalho de uns por outros, os sujeitos humanos passaram a ter diante deles obstáculos poderosíssimos, quando tentavam enxergar as coisas de um ângulo mais abrangente, mais universal. Passaram – como disse Lucien Goldmann – a sofrer as limitações de uma “perspectiva parcial inevitável”, que é, exatamente, a ideologia.
Na sociedade burguesa desenvolvida, industrializada, o problema se agravou. Com o capitalismo, o mercado se torna o centro da vida social e tudo tende a se tornar mercadoria. A força de trabalho também passa a ser uma mercadoria: é negociada no mercado, trocada por um salário. A forma do salário, segundo Marx, dá facilmente ao trabalhador a impressão de que está fazendo uma troca justa, mas na realidade ele está fazendo uma troca sempre desigual. E a ideologia – que camufla isso – assume a forma do que Marx chama de “o fetichismo da mercadoria”. O mercado oferece à nossa contemplação um espetáculo que mostra as mercadorias, coisas, objetos, se movendo por conta própria. Esse espetáculo influencia até a linguagem quotidiana. As pessoas falam; o petróleo subiu, o feijão baixou, o ônibus aumentou, o imposto diminuiu, o açúcar mascavo sumiu, etc. Por obra e graça dessa forma sutil de distorção ideológica (o “fetichismo da mercadoria”), os sujeitos que movimentam os objetos desaparecem...
A distorção ideológica não resultaria, assim, das manobras pérfidas de quaisquer “usinas” produtoras de ideologias a serviço da burguesia. Essas “usinas” até existem, mas não são as causadoras (no máximo amplificadoras e aproveitadoras) da distorção. A causa está na própria organização da sociedade, na sua cisão interna.
A ideologia, de acordo com Marx, não é a mentira pura e simples: ela pressupõe o conhecimento (ao menos algum conhecimento verdadeiro) e o distorce, a ponto de traí-lo.
Como enfrentar o desafio de combater e superar as distorções ideológicas ? Como ter certeza de que o meu ponto de vista, quando critico a ideologia, não está sendo ideológico ? Se a ideologia se expande e penetra sorrateiramente em todas as expressões culturais, o que me imunizaria contra ela ? O que seria o não-ideológico ?
Marx procurou responder a essas perguntas remetendo-se à prática. Para ele, o problema seria solucionado na medida em que o proletariado fizesse a revolução social, superasse o modo de produção capitalista e criasse a sociedade reunificada, sem classes e sem Estado: o comunismo.
Esse encaminhamento de solução para o problema encontrou resistências e hoje vem sendo considerado em muitos setores como utópico e politicamente pouco convincente. Sua credibilidade, que já era limitada no final do século XIX, ficou devastadoramente danificada pelos desdobramentos frustrantes das experiências socialistas que no século XX se caracterizaram como marxistas.
Temos, então, na teoria da ideologia elaborada por Marx dois aspectos: uma questão cuja vitalidade continua a ser amplamente reconhecida e uma solução que está bastante envelhecida. Nas páginas que se seguem, procuraremos lembrar, muito sumariamente, algumas das expressões dos movimentos teóricos de alguns pensadores que, após a morte de Marx, de algum modo, retomaram e reexaminaram a questão da ideologia.
Marx morreu em 1883. Engels viveu até 1895 e viu o início de mudanças importantes no campo da luta política: o movimento operário europeu criou os primeiros partidos de massa e os primeiros sindicatos de massa na história. O sufrágio universal (masculino) trouxe a possibilidade de serem arrancadas concessões às classes dominantes. Certas inquietações radicais do velho Marx foram atenuadas por seus seguidores.
Na concepção da história, a dialética cedeu espaço para o determinismo, que proporcionava certa segurança psicológica aos militantes (que, como observou Walter Benjamin, se sentiam na crista da onda que os impelia, inexoravelmente, em direção ao socialismo). A questão da ideologia ficou subaproveitada.
Lênin fez uma opção pragmática: deixou de lado a dimensão epistemológica da questão da ideologia e só se interessou pelo uso político imediato dela. Se algumas ideologias, burguesas, tinham um uso político conservador, e a elas se contrapunha uma ideologia proletária, progressista, era isso que importava. O “marxismo-leninismo” passou a operar com uma dicotomia que se afastava da preocupação teórica de Marx: a dicotomia ideologia progressista x ideologia conservadora.
Gramsci procurou combinar Lênin e Marx. Empenhou-se em articular a atenção que Marx dava à distorção do conhecimento com a atenção que Lênin dava ao uso histórico-político das ideologias. Concentrou suas observações na passagem do “senso comum” ao “bom senso” e abriu caminho para a análise crítica das formas de institucionalização do controle da produção de representações. Como uma classe consegue ser não apenas “dominante”, mas também – e decisivamente – dirigente ? Como ela passa a exercer sua “hegemonia” sobre a sociedade ? Como ela constrói o “consenso” ?
Em outras palavras: o que leva os setores populares à aceitação de uma política que, no fundo, não corresponde aos seus interesses ?
Lukács, ao se defrontar com esse mesmo problema, seguiu outro caminho, em sua reflexão filosófica. Em seu livro História e Consciência de Classe, o pensador húngaro analisou a forma contemporânea mais sutil da distorção ideológica: a “coisificação” (Verdinglichung). O “fetichismo da mercadoria” resulta inevitávelmente de uma atividade prática que está organizada de maneira a criar a aparência generalizada de uma “objetividade” inexorável, sobre a qual os sujeitos não podem ter nenhuma interferência efetiva. A subjetividade é reduzida a mero apêndice do movimento das coisas.
As formas espontâneas, imediatas, da consciência não têm poder para superar essa situação. Só uma consciência teoricamente articulada – a “consciência acrescentada” (zugerechnetes Bewusstsein) – pode mobilizar a classe operária para revolucionar esse estado de coisas e lançar as bases de uma nova organização, baseada num novo modo de produção.
O livro de Lukács exerceu grande influência sobre, entre outros, Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer, que nele se apoiaram para recusar a doutrina oficial do “marxismo-leninismo”. Adorno e Horkheimer, em especial, abandonaram a idéia de que o proletariado faria a revolução socialista e edificaria uma sociedade nova. Adorno definiu a perspectiva dos filósofos da chamada “Escola de Frankfurt” (da qual ele viria a ser o pensador “clássico”) como “teoria crítica” e o método que utilizavam como “dialética negativa”.
Os frankfurtianos se mantiveram críticos implacáveis do capitalismo e trouxeram para a reflexão sobre a questão da ideologia a tese de que o modo de produção capitalista fortaleceu muito sua influência ideológica através da “indústria cultural”. Os trabalhadores, explorados em suas necessidades, na esfera do trabalho, passaram a ser manipulados em seus desejos, na esfera do consumo. Passaram, em certa medida, a se identificar com as classes dominantes.
Criou-se uma situação esdrúxula. Os marxistas “ortodoxos”, que tinham a atuação política de maior repercussão prática, empobreciam o legado teórico de Marx. E os marxistas “heterodoxos”, que tinham uma influência política bem menor, contribuíam para revitalizar as inquietações radicais que se expressavam nos conceitos de Marx (entre os quais o de ideologia).
Na era em que Stálin era o principal dirigente do movimento comunista mundial, as reflexões mais originais a respeito da ideologia não vieram das fileiras dos partidos, mas de marxistas politicamente marginalizados, que não recuavam diante de teses ousadas ou bizarras, como o russo Mikhail Bakhtin (teórico da “carnavalização”) e o alemão Benjamin (que combinava o marxismo com a teologia judaica).
Bakhtin, com suas concepções do “dialogismo” e da “polifonia”, abriu espaço para que se reconhecesse o vigor subjetivo das potencialidades da cultura popular, em sua crítica à cultura das elites. E Benjamin, com sua disposição messiânica, contribuiu para que os verdadeiros revolucionários insistissem em “escovar a história a contrapelo”.
Uma exceção nesse quadro de marxistas situados fora das fileiras da militância organizada foi Louis Althusser, membro do Partido Comunista Francês, que elaborou uma concepção original da ideologia, empenhado em combater a falta de rigor da versão oficial do “marxismo-leninismo”. Assimilando idéias provenientes da psicanálise (sobretudo de Lacan), Althusser entendeu que a ideologia constituía uma esfera de fenômenos inelimináveis da representação da realidade pelos seres humanos, e sustentou que a ela se contrapunha a Teoria (com T maiúsculo), ou a Ciência.
A incisiva contraposição althusseriana entre a Ciência e a ideologia foi criticada por diversos ensaístas, entre os quais o inglês Raymond Williams e a brasileira Marilena Chauí. Raymond Williams e Marilena Chauí trouxeram para o aprofundamento da reflexão sobre o conceito de ideologia elementos preciosos extraídos de suas observações críticas a respeito das distorções ideológicas na produção cultural, respectivamente, da sociedade inglesa e da sociedade brasileira. Ambos, entretanto, sustentam que o conceito gramsciano de hegemonia, na medida em que parte de uma ligação essencial entre a teoria e a prática, entre a consciência e a ação, é mais abrangente (mais amplo) do que o conceito de ideologia.
Embora reconheça a extraordinária fecundidade do conceito gramsciano de hegemonia, não partilho dessa convicção de Williams e Chauí. Entendo que as ações que viabilizam a hegemonia também dependem de um momento especificamente teórico – ineliminável - no qual opções da consciência, marcadas pelas pressões da ideologia, interferem na prática. A questão da hegemonia, então, atravessa inevitavelmente um momento no qual fica subordinada à (e é abrangida pela) questão da ideologia.
Uma contribuição extremamente significativa à reflexão sobre a questão da ideologia vem sendo dada pelo alemão Jürgen Habermas, com sua teoria do agir comunicativo. Segundo Habermas, a razão instrumental, derivada do trabalho, estruturada a partir da relação sujeito/objeto (o sujeito dominando o objeto), vem ultrapassando a esfera da sua inegável competência e se expandindo (num movimento “imperialista”), em detrimento da esfera da razão comunicativa, derivada da linguagem e estruturada a partir da relação sujeito/sujeito (pela qual o sujeito precisa compreender o outro e fazer-se compreender pelo outro).
Com o predomínio da consciência tecnocrática, segundo Habermas, desenvolve-se uma forma de legitimação do existente que é mais eficaz do que as ideologias do tipo antigo. E a direção em que podemos combater, hoje, o agravamento das distorções ideológicas é a da defesa e do fortalecimento da razão comunicativa.
O norte-americano Fredric Jameson também se preocupa com as novas formas da distorção ideológica e para combate-las se debruça sobre as contradições da cultura pós-moderna. Para ele, uma crítica capaz de “historicizar o pós-modernismo” precisa estar atenta para, de um lado, a marca do horizonte limitado de uma determinada classe social e, de outro, para a marca da expressão utópica de uma solidariedade coletiva, que, mesmo prejudicada pela distorção, aponta para a necessidade humana geral do conhecimento (O Inconsciente Coletivo).
Um dos terrenos nos quais a fecundidade do conceito de ideologia tem sido posta à prova e tem produzido excelentes resultados é o território dos historiadores. Entre os sociólogos, a ideologia está em baixa (Bourdieu a abandona em favor da doxa e do habitus). Porém historiadores como Braudel (com o tempo da “longa duração”), Duby (com a percepção de que “a ideologia não é reflexo do vivido, mas um projeto de agir sobre ele”) ou Carlo Ginzburg (com o “paradigma indiciário”) trouxeram importantes contribuições para que a questão da ideologia venha suscitando crescente interesse, nas últimas décadas.
A problemática da ideologia vem viabilizando nas investigações históricas o fortalecimento de uma postura crítica e autocrítica, que ajuda o historiador a evitar prejulgamentos e avaliações formuladas em tom peremptório, lembrando ao sujeito que a realidade é sempre mais rica do que nós conseguimos reconhecer e estimulando nele – em relação a si mesmo e aos outros - uma preciosa desconfiança dialética em relação à construção e ao uso social do conhecimento.
Fonte: www.uff.br/sta/textos/cg010.doc
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
A principal contribuição de Marx às discussões contemporâneas em torno da teoria do conhecimento é, com certeza, sua teoria da ideologia.
O termo havia sido posto em circulação por Destutt de Tracy, que o empregava com sentido positivo; a ideologia era concebida como uma espécie de superciência, a ciência das idéias, que abrangia todas as outras. Quem conferiu sentido crítico à palavra foi Napoleão Bonaparte, irritado com os “ideólogos”, que a seu ver estavam querendo ensinar-lhe política e história. O socialista utópico Fourier encampou o significado restritivo, pejorativo, atribuído pelo imperador ao vocábulo e Marx desenvolveu toda uma teoria para explicar por que a ideologia era problemática.
Para Marx, a construção do conhecimento, por si mesma, apresenta grandes dificuldades, já que a aparência das coisas não coincide imediatamente com a essência delas e a apreensão do movimento do real exige o que Hegel chamava de “o esforço do conceito”. Porém Marx dava um passo além: abordava dificuldades adicionais, decorrentes da situação dos sujeitos do conhecimento. Como agem em condições que os dividem, que promovem a colisão de seus interesses vitais, esses sujeitos tropeçam em armadilhas criadas por eles e que eles mesmos não conseguem entender inteiramente.
Com a divisão social do trabalho, com a apropriação privada dos meios de produção, com a escravidão, a luta de classes, a exploração do trabalho de uns por outros, os sujeitos humanos passaram a ter diante deles obstáculos poderosíssimos, quando tentavam enxergar as coisas de um ângulo mais abrangente, mais universal. Passaram – como disse Lucien Goldmann – a sofrer as limitações de uma “perspectiva parcial inevitável”, que é, exatamente, a ideologia.
Na sociedade burguesa desenvolvida, industrializada, o problema se agravou. Com o capitalismo, o mercado se torna o centro da vida social e tudo tende a se tornar mercadoria. A força de trabalho também passa a ser uma mercadoria: é negociada no mercado, trocada por um salário. A forma do salário, segundo Marx, dá facilmente ao trabalhador a impressão de que está fazendo uma troca justa, mas na realidade ele está fazendo uma troca sempre desigual. E a ideologia – que camufla isso – assume a forma do que Marx chama de “o fetichismo da mercadoria”. O mercado oferece à nossa contemplação um espetáculo que mostra as mercadorias, coisas, objetos, se movendo por conta própria. Esse espetáculo influencia até a linguagem quotidiana. As pessoas falam; o petróleo subiu, o feijão baixou, o ônibus aumentou, o imposto diminuiu, o açúcar mascavo sumiu, etc. Por obra e graça dessa forma sutil de distorção ideológica (o “fetichismo da mercadoria”), os sujeitos que movimentam os objetos desaparecem...
A distorção ideológica não resultaria, assim, das manobras pérfidas de quaisquer “usinas” produtoras de ideologias a serviço da burguesia. Essas “usinas” até existem, mas não são as causadoras (no máximo amplificadoras e aproveitadoras) da distorção. A causa está na própria organização da sociedade, na sua cisão interna.
A ideologia, de acordo com Marx, não é a mentira pura e simples: ela pressupõe o conhecimento (ao menos algum conhecimento verdadeiro) e o distorce, a ponto de traí-lo.
Como enfrentar o desafio de combater e superar as distorções ideológicas ? Como ter certeza de que o meu ponto de vista, quando critico a ideologia, não está sendo ideológico ? Se a ideologia se expande e penetra sorrateiramente em todas as expressões culturais, o que me imunizaria contra ela ? O que seria o não-ideológico ?
Marx procurou responder a essas perguntas remetendo-se à prática. Para ele, o problema seria solucionado na medida em que o proletariado fizesse a revolução social, superasse o modo de produção capitalista e criasse a sociedade reunificada, sem classes e sem Estado: o comunismo.
Esse encaminhamento de solução para o problema encontrou resistências e hoje vem sendo considerado em muitos setores como utópico e politicamente pouco convincente. Sua credibilidade, que já era limitada no final do século XIX, ficou devastadoramente danificada pelos desdobramentos frustrantes das experiências socialistas que no século XX se caracterizaram como marxistas.
Temos, então, na teoria da ideologia elaborada por Marx dois aspectos: uma questão cuja vitalidade continua a ser amplamente reconhecida e uma solução que está bastante envelhecida. Nas páginas que se seguem, procuraremos lembrar, muito sumariamente, algumas das expressões dos movimentos teóricos de alguns pensadores que, após a morte de Marx, de algum modo, retomaram e reexaminaram a questão da ideologia.
Marx morreu em 1883. Engels viveu até 1895 e viu o início de mudanças importantes no campo da luta política: o movimento operário europeu criou os primeiros partidos de massa e os primeiros sindicatos de massa na história. O sufrágio universal (masculino) trouxe a possibilidade de serem arrancadas concessões às classes dominantes. Certas inquietações radicais do velho Marx foram atenuadas por seus seguidores.
Na concepção da história, a dialética cedeu espaço para o determinismo, que proporcionava certa segurança psicológica aos militantes (que, como observou Walter Benjamin, se sentiam na crista da onda que os impelia, inexoravelmente, em direção ao socialismo). A questão da ideologia ficou subaproveitada.
Lênin fez uma opção pragmática: deixou de lado a dimensão epistemológica da questão da ideologia e só se interessou pelo uso político imediato dela. Se algumas ideologias, burguesas, tinham um uso político conservador, e a elas se contrapunha uma ideologia proletária, progressista, era isso que importava. O “marxismo-leninismo” passou a operar com uma dicotomia que se afastava da preocupação teórica de Marx: a dicotomia ideologia progressista x ideologia conservadora.
Gramsci procurou combinar Lênin e Marx. Empenhou-se em articular a atenção que Marx dava à distorção do conhecimento com a atenção que Lênin dava ao uso histórico-político das ideologias. Concentrou suas observações na passagem do “senso comum” ao “bom senso” e abriu caminho para a análise crítica das formas de institucionalização do controle da produção de representações. Como uma classe consegue ser não apenas “dominante”, mas também – e decisivamente – dirigente ? Como ela passa a exercer sua “hegemonia” sobre a sociedade ? Como ela constrói o “consenso” ?
Em outras palavras: o que leva os setores populares à aceitação de uma política que, no fundo, não corresponde aos seus interesses ?
Lukács, ao se defrontar com esse mesmo problema, seguiu outro caminho, em sua reflexão filosófica. Em seu livro História e Consciência de Classe, o pensador húngaro analisou a forma contemporânea mais sutil da distorção ideológica: a “coisificação” (Verdinglichung). O “fetichismo da mercadoria” resulta inevitávelmente de uma atividade prática que está organizada de maneira a criar a aparência generalizada de uma “objetividade” inexorável, sobre a qual os sujeitos não podem ter nenhuma interferência efetiva. A subjetividade é reduzida a mero apêndice do movimento das coisas.
As formas espontâneas, imediatas, da consciência não têm poder para superar essa situação. Só uma consciência teoricamente articulada – a “consciência acrescentada” (zugerechnetes Bewusstsein) – pode mobilizar a classe operária para revolucionar esse estado de coisas e lançar as bases de uma nova organização, baseada num novo modo de produção.
O livro de Lukács exerceu grande influência sobre, entre outros, Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer, que nele se apoiaram para recusar a doutrina oficial do “marxismo-leninismo”. Adorno e Horkheimer, em especial, abandonaram a idéia de que o proletariado faria a revolução socialista e edificaria uma sociedade nova. Adorno definiu a perspectiva dos filósofos da chamada “Escola de Frankfurt” (da qual ele viria a ser o pensador “clássico”) como “teoria crítica” e o método que utilizavam como “dialética negativa”.
Os frankfurtianos se mantiveram críticos implacáveis do capitalismo e trouxeram para a reflexão sobre a questão da ideologia a tese de que o modo de produção capitalista fortaleceu muito sua influência ideológica através da “indústria cultural”. Os trabalhadores, explorados em suas necessidades, na esfera do trabalho, passaram a ser manipulados em seus desejos, na esfera do consumo. Passaram, em certa medida, a se identificar com as classes dominantes.
Criou-se uma situação esdrúxula. Os marxistas “ortodoxos”, que tinham a atuação política de maior repercussão prática, empobreciam o legado teórico de Marx. E os marxistas “heterodoxos”, que tinham uma influência política bem menor, contribuíam para revitalizar as inquietações radicais que se expressavam nos conceitos de Marx (entre os quais o de ideologia).
Na era em que Stálin era o principal dirigente do movimento comunista mundial, as reflexões mais originais a respeito da ideologia não vieram das fileiras dos partidos, mas de marxistas politicamente marginalizados, que não recuavam diante de teses ousadas ou bizarras, como o russo Mikhail Bakhtin (teórico da “carnavalização”) e o alemão Benjamin (que combinava o marxismo com a teologia judaica).
Bakhtin, com suas concepções do “dialogismo” e da “polifonia”, abriu espaço para que se reconhecesse o vigor subjetivo das potencialidades da cultura popular, em sua crítica à cultura das elites. E Benjamin, com sua disposição messiânica, contribuiu para que os verdadeiros revolucionários insistissem em “escovar a história a contrapelo”.
Uma exceção nesse quadro de marxistas situados fora das fileiras da militância organizada foi Louis Althusser, membro do Partido Comunista Francês, que elaborou uma concepção original da ideologia, empenhado em combater a falta de rigor da versão oficial do “marxismo-leninismo”. Assimilando idéias provenientes da psicanálise (sobretudo de Lacan), Althusser entendeu que a ideologia constituía uma esfera de fenômenos inelimináveis da representação da realidade pelos seres humanos, e sustentou que a ela se contrapunha a Teoria (com T maiúsculo), ou a Ciência.
A incisiva contraposição althusseriana entre a Ciência e a ideologia foi criticada por diversos ensaístas, entre os quais o inglês Raymond Williams e a brasileira Marilena Chauí. Raymond Williams e Marilena Chauí trouxeram para o aprofundamento da reflexão sobre o conceito de ideologia elementos preciosos extraídos de suas observações críticas a respeito das distorções ideológicas na produção cultural, respectivamente, da sociedade inglesa e da sociedade brasileira. Ambos, entretanto, sustentam que o conceito gramsciano de hegemonia, na medida em que parte de uma ligação essencial entre a teoria e a prática, entre a consciência e a ação, é mais abrangente (mais amplo) do que o conceito de ideologia.
Embora reconheça a extraordinária fecundidade do conceito gramsciano de hegemonia, não partilho dessa convicção de Williams e Chauí. Entendo que as ações que viabilizam a hegemonia também dependem de um momento especificamente teórico – ineliminável - no qual opções da consciência, marcadas pelas pressões da ideologia, interferem na prática. A questão da hegemonia, então, atravessa inevitavelmente um momento no qual fica subordinada à (e é abrangida pela) questão da ideologia.
Uma contribuição extremamente significativa à reflexão sobre a questão da ideologia vem sendo dada pelo alemão Jürgen Habermas, com sua teoria do agir comunicativo. Segundo Habermas, a razão instrumental, derivada do trabalho, estruturada a partir da relação sujeito/objeto (o sujeito dominando o objeto), vem ultrapassando a esfera da sua inegável competência e se expandindo (num movimento “imperialista”), em detrimento da esfera da razão comunicativa, derivada da linguagem e estruturada a partir da relação sujeito/sujeito (pela qual o sujeito precisa compreender o outro e fazer-se compreender pelo outro).
Com o predomínio da consciência tecnocrática, segundo Habermas, desenvolve-se uma forma de legitimação do existente que é mais eficaz do que as ideologias do tipo antigo. E a direção em que podemos combater, hoje, o agravamento das distorções ideológicas é a da defesa e do fortalecimento da razão comunicativa.
O norte-americano Fredric Jameson também se preocupa com as novas formas da distorção ideológica e para combate-las se debruça sobre as contradições da cultura pós-moderna. Para ele, uma crítica capaz de “historicizar o pós-modernismo” precisa estar atenta para, de um lado, a marca do horizonte limitado de uma determinada classe social e, de outro, para a marca da expressão utópica de uma solidariedade coletiva, que, mesmo prejudicada pela distorção, aponta para a necessidade humana geral do conhecimento (O Inconsciente Coletivo).
Um dos terrenos nos quais a fecundidade do conceito de ideologia tem sido posta à prova e tem produzido excelentes resultados é o território dos historiadores. Entre os sociólogos, a ideologia está em baixa (Bourdieu a abandona em favor da doxa e do habitus). Porém historiadores como Braudel (com o tempo da “longa duração”), Duby (com a percepção de que “a ideologia não é reflexo do vivido, mas um projeto de agir sobre ele”) ou Carlo Ginzburg (com o “paradigma indiciário”) trouxeram importantes contribuições para que a questão da ideologia venha suscitando crescente interesse, nas últimas décadas.
A problemática da ideologia vem viabilizando nas investigações históricas o fortalecimento de uma postura crítica e autocrítica, que ajuda o historiador a evitar prejulgamentos e avaliações formuladas em tom peremptório, lembrando ao sujeito que a realidade é sempre mais rica do que nós conseguimos reconhecer e estimulando nele – em relação a si mesmo e aos outros - uma preciosa desconfiança dialética em relação à construção e ao uso social do conhecimento.
Fonte: www.uff.br/sta/textos/cg010.doc
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