Por João Paulo da Silva
Nós não estranhamos mais as incongruências do mundo. Desaprendemos a discordar dos erros e deixamos de contestar as contradições que nos fazem andar como caranguejos. Perdemos a capacidade do espanto, da estranheza; perdemos aquilo que nos caracterizava como seres humanos. Aposentamos os olhos que nos permitiam enxergar muito além do próprio umbigo. Agora, nossa revolta diante das injustiças se resume a breves e descompromissados ensaios de solidariedade humana. Hoje balançamos a cabeça em sinal de negativa, soltamos um suspiro, um muxoxo, comentamos com a pessoa ao lado que as coisas vão mal, e só. Não. Minto. Há, também, aqueles que reclamam do mundo do alto de suas poltronas enquanto vêem TV, levantando apenas para pegar mais uma cerveja na geladeira. Por vezes, achamos tudo muito normal, mas para evitar crises noturnas de consciência fingimos um certo senso de compaixão social. Uma sensibilidade tão artificial quanto a frase “lamento não poder ajudar”, que costumamos dizer mecanicamente todos os dias.
Andamos nas ruas, entramos em shoppings, paramos em bares, comemos em restaurantes. Rodamos pelo mundo. Das nossas mesas, notamos os meninos com fome do lado de fora. Ficamos com pena. Pensamos nos famintos do mundo e em toda aquela miséria injustificável. Achamos tudo um absurdo. Trocamos meia-dúzia de palavras sobre o governo. Ficamos revoltados. Mas aí o garçom chega com o jantar e nós esquecemos os meninos. Das calçadas de nossas cidades, avistamos famílias sem-teto e com frio embaixo das pontes. Sentimos frio também. Imaginamos: como eles conseguem dormir daquele jeito? Não acreditamos nas cabanas de plástico e muito menos nos cobertores de papelão que vemos. Lamentamos e sofremos pelas vidas alheias. Aí pensamos na chuva que logo vai cair e corremos para nossas casas e camas quentes, tão alheias quanto nós. De dentro de nossos lares, sentados com os pés para cima, observamos o mundo desfilar suas tragédias através da tela da TV. Xingamos tudo e nos perguntamos: que merda de mundo é esse? Choramos pelas vítimas das guerras, agora transmitidas em high definition. Achamos uma violência sem tamanho a mulher assassinada pelo ex-marido. Ficamos horrorizados com as novas medidas do governo, com a seca do Nordeste, as enchentes do Sudeste e o desemprego crescente. Esbravejamos para todos os lados. Mas aí levantamos da poltrona, vamos até a geladeira e pegamos mais uma cerveja. Desgraçadamente, nós desaprendemos a estranhar.
A estranheza era aquilo que nos permitia manter os olhos sempre abertos, com a sensibilidade à flor da pele e o senso de justiça rangendo nos dentes. A estranheza era o sentimento de revolta permanente, era a certeza de que não poderíamos cochilar um segundo sequer até que tirássemos o mundo do avesso. A estranheza era a garantia de que estávamos vivos. Reaprender a estranhar as “normalidades” dessa selva de pedras, sangue e farrapos é a condição indispensável para decidirmos se queremos ser humanos ou permanecer caranguejos.
Nós não estranhamos mais as incongruências do mundo. Desaprendemos a discordar dos erros e deixamos de contestar as contradições que nos fazem andar como caranguejos. Perdemos a capacidade do espanto, da estranheza; perdemos aquilo que nos caracterizava como seres humanos. Aposentamos os olhos que nos permitiam enxergar muito além do próprio umbigo. Agora, nossa revolta diante das injustiças se resume a breves e descompromissados ensaios de solidariedade humana. Hoje balançamos a cabeça em sinal de negativa, soltamos um suspiro, um muxoxo, comentamos com a pessoa ao lado que as coisas vão mal, e só. Não. Minto. Há, também, aqueles que reclamam do mundo do alto de suas poltronas enquanto vêem TV, levantando apenas para pegar mais uma cerveja na geladeira. Por vezes, achamos tudo muito normal, mas para evitar crises noturnas de consciência fingimos um certo senso de compaixão social. Uma sensibilidade tão artificial quanto a frase “lamento não poder ajudar”, que costumamos dizer mecanicamente todos os dias.
Andamos nas ruas, entramos em shoppings, paramos em bares, comemos em restaurantes. Rodamos pelo mundo. Das nossas mesas, notamos os meninos com fome do lado de fora. Ficamos com pena. Pensamos nos famintos do mundo e em toda aquela miséria injustificável. Achamos tudo um absurdo. Trocamos meia-dúzia de palavras sobre o governo. Ficamos revoltados. Mas aí o garçom chega com o jantar e nós esquecemos os meninos. Das calçadas de nossas cidades, avistamos famílias sem-teto e com frio embaixo das pontes. Sentimos frio também. Imaginamos: como eles conseguem dormir daquele jeito? Não acreditamos nas cabanas de plástico e muito menos nos cobertores de papelão que vemos. Lamentamos e sofremos pelas vidas alheias. Aí pensamos na chuva que logo vai cair e corremos para nossas casas e camas quentes, tão alheias quanto nós. De dentro de nossos lares, sentados com os pés para cima, observamos o mundo desfilar suas tragédias através da tela da TV. Xingamos tudo e nos perguntamos: que merda de mundo é esse? Choramos pelas vítimas das guerras, agora transmitidas em high definition. Achamos uma violência sem tamanho a mulher assassinada pelo ex-marido. Ficamos horrorizados com as novas medidas do governo, com a seca do Nordeste, as enchentes do Sudeste e o desemprego crescente. Esbravejamos para todos os lados. Mas aí levantamos da poltrona, vamos até a geladeira e pegamos mais uma cerveja. Desgraçadamente, nós desaprendemos a estranhar.
A estranheza era aquilo que nos permitia manter os olhos sempre abertos, com a sensibilidade à flor da pele e o senso de justiça rangendo nos dentes. A estranheza era o sentimento de revolta permanente, era a certeza de que não poderíamos cochilar um segundo sequer até que tirássemos o mundo do avesso. A estranheza era a garantia de que estávamos vivos. Reaprender a estranhar as “normalidades” dessa selva de pedras, sangue e farrapos é a condição indispensável para decidirmos se queremos ser humanos ou permanecer caranguejos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário